"UBE Blogs"

quinta-feira, novembro 12, 2009

Poetizando mesmo assim

Amanhã
Quem sabe

No domingo
Com certeza

Mais provável
Nas férias

Porque o hoje está perdido

O futuro da incerteza
Na busca da felicidade

Vivem
E passam
Como se morressem
A cada dia

Falam
Como se conhecessem o amanhã

Nada sabem
Nada entendem
Senão, que o hoje está perdido
Seu hoje de escravidão sem cor.

Quisera gritar-lhes
Hoje existe!
Único que persiste
Amanhã é irreal

Não ouvem, continuam
Na ânsia louca de buscá-lo
Para curar-lhes a alma ferida
Cansada, Iludida
Pelo prazer que nunca chega.

Gente feia
Gente gasta

Conversam
Como se falassem a si mesmo
E nem isso ouvem

Apinhados
Apertados
Não cabem no espaço reservado
Mas cabem na vastidão do mundo

Mundo vasto mundo
Ela não se chama Raimunda
Mas não é feia que não possa casar

Casou-se
Agora tem marido e filhos para sustentar
Ele mutilado por uma fera enlatada
Que com garras dentadas
Arrancou-lhe o amanhã

Arrasta carregando o corpo
Como um molusco em sua casca
Sem cajado
Sem esperança

Olhos distantes Coração vazio
Máquinas os levam,
Máquinas os trazem
Pelas sombras da realidade

Subprodutos.

Não inauguram linhagens
Abelhas
Que produzem operárias

Liberdade, Igualdade!
Gritam,
Empunhando a bandeira desfraldada

Gasta
Suja
De uma luta sem vitória

Preferem as limpinhas
Carne fresca e rija
Olhos brilhantes

Inocência

Boa qualidade

Gastam beleza
Juventude
Alegria e sonhos

Combustível
De uma máquina fria
Que espalha
Fiapos, farrapos e trapos
Pelo caminho

Agora é 18:05
Só posso sair 18:45
Meu tempo não é dinheiro
É desperdício

Meus braços
Os braços chegarão a tempo

Tudo vale a pena
Se alma é pequena.

Chame o dono do mundo!

Precisando de dinheiro?
Precisando de dinheiro?
Precisando de dinheiro?

Um chamado urgente
Eco surdo
Por olhos distantes

Alguém realmente precisa de dinheiro.

Roupas móveis
Gentes coisas
Moto táxi
Táxi táxi
Fone cell
Donald Mac
Táxi móveis
Moto carros
Coisas gentes
Ecos surdos
Sons agudos
Homens mudos.

Queria fazer um soneto
Quarteto, quinteto
Terceto, dueto
Sem teto para esconder
Sem paredes para dividir
O mundo do mundo em mundo
Imundo amanhecer
Um hoje que chora um silêncio
Que alguém pode ouvir

Braços que choram coisas
Derramam coisas
Produzem coisas
Sem nada possuir

Braços que se gastam se agastam
Na gastura de não pertencer
A corpo algum

Se alegrar na vida que não vive?
Ou viver na vida sem prazer?

Duas bandeiras empenhadas
Nestas almas não mais envergonhadas
Sem fronha, sem bronha,
Sem nada.

Feias
Gordas
Tortas

Uma vez belas

Hoje

Sonhos esquecidos
Amadurecidos
Apodrecidos
Na espera do amanhã
Que não vem

Hoje
Hoje
Hoje
Porque a vida é feita de tantos hojes?

Tudo vale a pena
Se a alma é pequena

─ 10 reau a carteirinha
─ 10 reau o exame
─ 15 o acompanhante

O prazer
Custa caro
Elas precisam só dos braços.

Chamem o dono do mundo!

Diga-lhe que cale essa louca
Que não tem licença para poetizar
Tristezas e amarguras não poucas.

Dêem aos homens nobres
Da mais alta envergadura
Para que em palácios brilhantes
Compor belezas etéreas e puras

Chamem o dono do mundo!

Para calar a loucura
Que no coração se agita
Quando na caixa de lata
Enxerga o hoje da vida dura

Chamem o dono mundo, agora
Pois com certeza,
Foi ele
Quem abriu a boceta de Pandora

quarta-feira, novembro 04, 2009

THE SNOW CHILD

UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná –Curso de Letras Port/Inglês
Disciplina: Literaturas de Língua Inglesa I; Docente: Valdomiro Polidório
Acadêmicos: Dhandara Soares de Lima; Patrick Thomazine; Regina Chaves.

Breve análise de The Snow Child, de Angela Carter

O conto The snow child, escrito por Angela Carter e publicado em um de seus livros de contos, The Bloody Chamber and Other Stories (1979), pode ser analisado a partir da perspectiva da construção cultural da relação entre homens e mulheres. Assim, ele é uma alegoria do modo como a sociedade alienou as mulheres e a própria participação destas na manutenção desse sistema misógino.
O conto é uma narrativa breve que possui, tipicamente, apenas núcleo narrativo, que inicia-se com um casal cavalgado pela neve, o Conde e a Condessa. O equilíbrio é quebrado quando o Conde diz que gostaria de “ter uma menina branca como a neve”. Achando um buraco na neve cheio de sangue, diz que gostaria de “ter uma menina vermelha como sangue” e, vendo um corvo, gostaria de “ter uma menina negra como as penas daquele pássaro”. Como vemos, aqui já é evocada a fantasmagoria do conto de fadas “Branca de Neve”.
Angela Carter foi uma feminista – o que, por si só, evidencia sua conexão com a época em que vivia –, jornalista e escritora de diversos gêneros e estilos, desde teoria e crítica literária até literatura infantil, passando pela literatura fantástica, como é o caso do conto em tela; Nasceu na Inglaterra e viveu entre 1930 e 1992, participando e ajudando a formar o que Linda Hutcheon definiu como “poética do pós-modernismo”, que se mostra claramente nesta obra. O pós-modernismo tem como algumas de suas características o questionamento, a ruptura com a seriedade “sizuda” das estéticas e da cultura dita “erudita” e, daí, a experimentação criativa, a intertextualidade como elemento fundamental e a apresentação do direcionamento ideológico do autor de forma clara, ainda que não pragmática – como é a própria Literatura. Em The snow child é questionado o próprio modo como a mulher vem sendo tratada durante os séculos de cultura patriarcal e o seu papel na manutenção dessa própria cultura; o conto, ainda que linear, utiliza-se de elementos que causam estranhamento, lembrando o enredo que percebemos em um sonho. Parte disso se deve à escolha de utilizar-se do maravilhoso puro, que, segundo Todorov, é quando a narrativa possui elementos fantásticos que não são questionados – ou seja, regras do mundo natural são quebradas mas são vistas como parte integrantes da fábula (utilizando-se a nomenclatura cunhada por Umberto Eco, significando a realidade proposta na obra literária) e, por isso, aceitas tanto pelos personagens quanto pelo leitor implícito. Assim, não é o elemento maravilhoso que causa o estranhamento, mas os eventos grotescos que aparecem no enredo, de que trataremos a tempo.
Uma grande característica da estética pós-moderna que podemos observar nessa narrativa de Carter é a intertextualidade com o já mencionado conto de fadas da Branca de Neve. Ainda que este seja um conto teoricamente pertencente à literatura alemã, por ter sido escrito pelos irmãos Grim, é uma narrativa que se acredita ter surgido no interior da França, séculos antes de ter sido formalizada pelos alemães. Essa própria origem do conto mostra como ele é, fundamentalmente, uma mistura de culturas e parte da tradição oral e popular. Na realidade, essa é uma característica de vários contos de fada, razão pela qual Angela Carter declarou, no prefácio do livro de contos em que figura The snow child seu interesse por essa variedade literária. Carter era fascinada por culturas diferentes, era fluente também nas línguas francesa e alemã e viveu por um tempo em Tóquio. Pesquisava sobre a tradição de contação de histórias pela tradição popular, o que dizia ser a cultura “renegada” pelo registro histórico dominante, que privilegiava (assim como ainda privilegia) a erudição e não a manifestação espontânea, além de procurar as raízes do matriarcado e, sendo feminista, pesquisou para entender o momento histórico em que a mulher deixou de ser o início sagrado da vida (como é na visão matriarcal) e passou a ser subjugada e renegada à servidão. Devido a seu interesse pela cultura marginal popular e pela busca de respostas para a situação atual através das produções culturais humanas, chegou até mesmo a traduzir um dos livros de contos de fadas dos irmãos Grim.
Provavelmente devido a esse interesse se dedicou à reescritura de vários contos de fadas, como A Bela e a Fera, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul e A Branca de Neve. No caso do último, essa reescritura se dá em forma de referência: a autora não se atém ao enredo nem a outros elementos da narrativa, mas evoca a idéia do conto presente no imaginário coletivo, o que pode ser visto também como uma forma dela nos chamar a atenção para a própria construção de nossa consciência cultura. Portanto, não é a reescritura do conto que é importante, mas as implicações das referências presentes – isso sem atermo-nos no próprio maravilhoso puro que a autora escolhe para basear sua fábula.
O casal que aparece inicialmente na narrativa não é qualquer casal: são um conde e uma condessa. Essas imagens foram provavelmente escolhidas para passar-nos a idéia de passado, afinal títulos de “nobreza” não são elementos pertencentes aos dias atuais, mas a tempos idos e, mais que isso, ultrapassados. Se pensarmos que eles representam a cultura patriarcal dominante por séculos, percebemos então uma tendência avant-guarde da autora, prevendo uma possível mudança cultural, além de, obviamente, criticando o pensamento até então dominante.
Na continuação do enredo, dos desejos e pedidos do Conde surge a menina de neve, branca e nua – imaculada e pura, representando a menina púbere, que ainda não é uma mulher, mas já desperta fantasias eróticas masculinas. O Conde a coloca em seu colo e continuam a andar de cavalo. Desde então a Condessa (correspondente à madrasta do conto de fadas) a odeia e só consegue pensar em como poderia se livrar dela. A partir de então a Condessa começa a tentar eliminar aquela que vê como uma rival: joga suas luvas na neve para que possa passar por cima da menina com o cavalo, quando esta fosse buscá-las e joga diamantes em um pequeno lago para que a moça se afogue ao tentar pegá-los. Ambas as tentativas são frustradas pelo Conde, que impede que a menina vá buscar as coisas da Condessa e diz que lhe comprará outros. Outro aspecto interessante desses acontecimentos é que a cada vez partes de símbolos de poder e conforto da Condessa passam magicamente para a menina de neve, mostrando exatamente a perda de poder que a mulher mais velha sente na presença da mais nova e, principalmente, a cada gesto de gentileza do homem para com essa menina.
Finalmente, a Condessa pede que a menina lhe busque uma rosa e isso o Conde diz que “não lhe pode negar”. Quando busca a rosa, a menina se pica em um dos espinhos e “sangra, grita e cai”. Vendo a morte da menina, o Conde desce do cavalo chorando e “enfia seu membro viril na garota morta” – cena que consideramos como sendo o auge da estética grotesca presente no texto. A Condessa apenas o observa, de cima de seu cavalo. Nesse momento, a imagem que o leitor implícito recebe é de uma inversão de papéis sociais: o homem, tido pela filosofia do sistema patriarcal como racional e severo, em contraposição à mulher, emocional e indolente, é agora figurado de forma absolutamente animalesca, enquanto a mulher o espera, racional e fria, quase manipuladora. Como a importância que a Condessa dava a suas jóias e peles eram apenas instrumentos e joguetes para aquisição e manutenção de seu poder, podemos perceber que Angela Carter implicita o questionamento de até que ponto as mulheres estiveram realmente tão subjugadas quanto nos chegou ao conhecimento e se esse próprio subjugo não teria sido um subterfúgio para a manutenção do poder que era realmente exercido.
Depois dessa cena de pseudo-necrofilia (dado que não se tratava de um cadáver, mas de uma fantasia morta), a menina derrete, sobrando na areia apenas os “rastros da caçada de uma raposa” na neve: uma gota de sangue e uma pena de corvo, assim como a rosa que havia pêgo. Com isso fica claro que a menina era uma fantasia, uma criação – alegorizando exatamente uma criação cultural. Satisfeita, com suas peles e botas novamente, a Condessa pega a rosa que o Conde lhe alcança e a deixa cair, dizendo que “espinha”. Nesse momento fica evidente que a Condessa não desejava nada do que pedia, apenas queria manter seu prestígio, assim como fica implícita uma certa arrogância dessa personagem.
The snow child é certamente um conto interessantíssimo, absolutamente eloquente para nossa época e universal na esfera humana. Esse conto serve de alegoria para as relações sociais, em relação ao sexo dos atores sociais. Há, nele, o homem patriarcal, a matrona patriarcal e a menina jovem, presa entre as redes de interesses e manipulações de poder entre estes e que, sendo o “elo mais fraco”, é a que acaba sofrendo as consequências dessas estratégias manipulativas. Ele ilustra, também, como as próprias mulheres, com sua competitividade entre si, reafirmam o sistema misógino (no sentido mais lato da palavra, de ódio e repulsa ao feminino) contribuem para a manutenção deste, por, talvez, terem conseguido uma “brecha” para obtenção de poder – neste caso, através do casamento e subsequente manipulação dos maridos, o que seria uma manipulação indireta dos acontecimentos sociais importantes.
A menina não tem voz nesse conto: ela não fala nem age por conta própria, o que reforça a idéia de que ela representa um tipo social que não tem participação nas decisões. Se pensarmos o próprio nome atribuído a ela, “child” pode significar tanto criança, menina, quanto “filho”; adotando a segunda opção, a menina seria a filha da neve, uma criação da neve, em uma perspectiva em que a neve não é tomada no sentido da palavra poética mas entendida na esfera da alegoria, significando, portanto, os valores semióticos atribuídos à neve, como gelo e frio, tal que branco e infertilidade. Desta forma, a personagem-título do conto é o fruto da frieza e realmente não pode ser duradoura, afinal, nasce de um ambiente infértil, onde a vida não tem espaço.

O feminismo no conto

O conto “A Criança de neve” será, agora, analisado a partir de uma perspectiva de conflito entre o homem e mulher na constituição universalista cuja representatividade transcende a do casamento e se revela num jogo erótico e sensual no qual delineia e se alterna o embate entre dominador e dominado. Para que a análise tenha um lume especial foi-nos dado refletir sob o olhar da autora Simone de Beauvoir.
A narrativa breve respeita sua característica ao formar a imagem confusa que nos leva a analisar com criticidade os elementos incorporados pelo narrador para que, desta forma consigamos atingir maior amplitude de nosso objetivo.
Nele, o casal cavalgando pela neve representa não um casal comum, num passeio em pleno inverno, mas um casal cuja representatividade invade o social no qual o psicológico nos é revelado sem que possamos analisá-los sob a ótica de mero leitor, porém ao submetermos sob a luz da crítica reconheceremos uma relação homem/mulher juntos num contexto histórico social e distanciados pelo conflito que se estabelece no mesmo momento em que a sociedade, assim como a conhecemos, teve seu inicio.
Para Simone Beauvoir essa relação existe a partir de um acordo estabelecido num determinado momento da historia em que era imprescindível tal união para garantia existencial do gênero humano. Um acordo no qual a força masculina ganhou status de Senhor e sensibilidade feminina a função de sujeição.
A imagem tecida no conto torna-se indecifrável até o último parágrafo ao tentarmos pressupor se narrado por um narrador masculino ou feminino dado a energia com que os símbolos argumentativos são dispostos, pois encontramos nele tanto argumentos masculinos, quanto traços da feminilidade conflitante.
Os indícios do masculino ao desenhar a sensualidade feminina entalhada na amplidão nevada no qual a brancura da carne, o preto dos cabelos, o vermelho dos lábios, e as botas de salto vermelho compõem no jogo de poder o desejo masculino pela jovialidade da carne feminina reproduzida entre os lampejos de nudez que ora descobre os ombros, ora o corpo todo, confirmando a sensualidade que transcende para o ambiente e ao mesmo tempo em que revela o erotismo masculino, descortina a sensualidade feminina que compõem dois ativos participantes na execução do jogo de entrega e posse.
Segundo Beauvoir, "A hierarquia dos sexos manifesta-se à mulher ainda na vida familiar, (...) enquanto que, socialmente o homem é um indivíduo autônomo e completo. ele é encarado antes de tudo como um produtor e que o papel de reprodutora em que se confinou a mulher não lhe assegurou igual dignidade” (p.28 e 166).
Para o homem “suas tendências eróticas são assumidas alegre e livremente” (p. 30), enquanto a mulher faz um jogo de esconde-esconde sob caprichos e docilidades.
O homem deseja a juventude porque além da satisfação carnal, é na inocência e na pureza da menina-mulher que ele encontra o momento ideal para imprecar seu domínio e estabelecer sua soberania.
O branco da neve e o desejo por uma menina contextualizam a idealização masculina em busca do poder. No momento em que ele a puxa e a coloca em sua frente na sela revela a função de protetor forte para o frágil.
Para Beauvoir, a soberania masculina é exercitada e estimulada pela mulher que vê no homem a perpetuação da espécie e fonte inesgotável de “mimos”. É da mulher-mãe que o homem recebe os primeiros estímulos para enfrentar o mundo, mas é a rivalidade contra o pai que o empurra para fora, rumo ao desconhecido. “A rua é masculina e o ambiente doméstico é feminino” convencionado através da religião e do contexto social.
Para a menina, o pai é a figura que sugere segurança, confiança, (complexo de Electra) que procura no amante as mesmas qualidades, como diz Beauvoir: “Os psicanalistas afirmam de bom grado que a mulher busca no amante a imagem do pai; mas por ser homem e não por ser pai que ele deslumbra a criança, e todo homem participa dessa magia. A mulher não almeja reencarnar um indivíduo no outro e sim ressuscitar uma situação: a que conheceu menina, ao abrigo dos adultos”.
Quer dizer, o papel destinado á mulher “é o melhor dos dois”, pois a ela é dada toda proteção, todo o carinho e atenção desde o momento de seu nascimento, de maneira que a parte mais dura sobrou para o homem desde a mais tenra idade. Cabe a ele definir ou transformar a sociedade em que vive. Dele é exigido a coragem, a audácia, o autodomínio, a rudeza e a determinação nos assuntos que envolvem a sociedade, enquanto a mulher desfruta do teto e dos limites no qual está assegurada sua proteção pelo domínio masculino.
A menina do conto não se manifesta, não fala, se deixa dominar e se deixa morrer. Ela é desejada pelo homem como um símbolo da paixão, enquanto é odiada pela mulher como símbolo da negação.
A negação e a passividade são os elementos da contradição e do conflito que permeia o conto. É a luta dualística no mesmo interior entre o ser dominado e o que não quer se deixar dominar, por isso a necessidade que um deles morra para que o outro triunfe.
Quando fazemos alusão ao conto Branca de Neve buscando nele elementos que possibilitem comparações, percebemos o mesmo conflito dualístico feminino entre a jovialidade de Branca e a insegurança da rainha bruxa. Porém há entre eles um abismo cavado pelo narrador que busca a liberdade feminina da erotização masculina, e esta liberdade sugere a morte da menina-mulher.
O abismo se interpõe quando Branca é ressuscitada pelo príncipe através do beijo resgatador perpetuando assim o poder masculino sobre o feminino, enquanto que no conto “A menina de neve” tem outro desfecho.
Neste jogo sedutor a imagem da mulher dominadora nos é mostrada pela altivez do cavalgar de botas de salto alto, dos lábios vermelhos e a vestimenta em peles brilhantes que transformam a mulher num ser tão poderoso quanto o homem. A luta transcorre no mesmo momento da sedução e do deixar-se seduzir. O homem busca a menina e a mulher tenta escondê-la. Ela a odeia, ele a deseja. O homem tenta protegê-la e a mulher, matá-la, pela passividade da qual quer se libertar, mas o homem sabe como chegar ao coração feminino, as táticas são desenvolvidas, segundo Kate Millet na obra Política Sexual, “como estratégias na gestão de um governo”. As palavras carinhosas derretem o coração feminino que se deixa envolver pela docilidade da voz que sempre lhe parece áspera e fria. Aqui percebemos o conflito não como uma derrota, mas como uma vitória feminina bem ao estilo de uma líder feminista cuja liberdade é sua principal bandeira.
A rosa vermelha tanto pode representar o argumento no qual o masculino estabelece a troca da relação carnal pela proteção, como a manipulação do sentimento feminino. A proteção tem um preço, e o preço é a submissão, uma rosa com espinhos que ferem e arrancam da mulher gritos de dor e sangue.
Simone de Beauvoir fala em sua obra “que não se nasce mulher, transforma-se em mulher” e essa transformação é acompanhada de muita dor e sangue, sangra na adolescência e neste momento inicia-se a distância e a diferenciação entre menino e menina sob a égide da não aceitação, do desprezar-se, é o momento de reclusão, de recato e de movimentos leves e pensados. Também é sob dor e sangue que se entrega pela primeira vez ao seu amante e ainda sob este estigma que gera filhos e os amamenta. O rastro de sangue da caça ferida se arrasta pela neve, enquanto ao homem cabe-lhe nascer, crescer e ganhar o mundo, basta que tenha em seu semblante a coragem do caçador e a força de um deus imaginado e desejado pela mulher.
O embate termina, a relação carnal acontece e a menina de neve derrete-se, o dedo é ferido, mas a mulher se veste e se nega a aceitar outra vez a rosa, a troca e a manipulação de seu sentimento. Teve despertada de sua condição passiva e busca agora a sua força e a sua coragem, ela diz não quando sempre lhe foi negado dizer não. A menina está morta e a mulher que ali está, quer ser aceita de igual para igual. É neste momento que percebemos o narrador como feminino, ela expõe a condição submissa da mulher como negação de sua própria condição humana e dá a solução para tão grande mal, matar a passividade e a sujeição. Matar o único momento em que o homem pode dominá-la. Usar seu poder de dominadora para inverter os papéis. Eis o abismo entre a Branca de Neve e a Menina de Neve: uma é resgatada enquanto a outra desaparece. Beauvoir afirma que a única condição para que homem e mulher possam ser reais e sem as máscaras sociais a que se sujeitaram será a aceitação de ambos sobre o próprio poder e o poder do outro numa participação que se aproxima do socialismo.
Concluímos que a narradora deixa no conto sua marca como feminista ao compor elementos que subvertem o poder masculino e enaltecem a liberdade feminina travestida de resistência e autodefinição numa luta cujo quadro empresta tons do gótico pós-modernista, mesclando em preto, vermelho e cinza enquanto desenha o mágico do conto da literatura infantil russa em coexistência entre elementos reais como o sangue e o pássaro no galho nu. As marcas sugerem resquícios fragmentados da autora Ângela Carter e de sua opção de vida e de luta pela liberdade feminina.

O Homem sem cor

O HOMEM SEM COR[1]
Regina CHAVES[2]


RESUMO
: Avaliar o homem como representante de sua esfera social e étnica inserido na tênue linha entre a literatura e realidade, buscando entre elas, o caminho percorrido pelo narrador e pelo personagem que tenta explicar tal posicionamento, enquanto observador da guerra que se trava entre os universos do preconceito no dicotômico mundo ficcional e real, e que, em ambos, o preconceito é elemento de negação e afirmação deste homem. Trabalho que só é possível sob o estudo sociológico de Durkheim. E este é nosso objetivo a visualizar na obra de Moacyr Scliar.

PALAVRAS-CHAVE: O Centauro no Jardim; Moacyr Scliar; Preconceito; Literatura Contemporânea.

Ler e analisar uma obra requer um pouco mais que simplesmente a busca pelo prazer. Ler e analisar O Centauro no Jardim nos faz andarilhos, quando o assunto é viajar por entre as sombras da realidade brasileira, na tentativa de unir elos que representa uma nação multifacetada.
Este não é o principal foco da narrativa, mas é nos pormenores que nos debruçamos para exprimir o que há de tão significativo, quando o autor escolhe um animal da mitologia para descrever o homem. Certamente é a essência, mais que o homem, que o torna um símbolo mítico.
O centauro no jardim de Moacyr Scliar está dividido em 12 capítulos. Como as 12 tribos de Israel, os 12 filhos de Jacó, os 12 meses do ano, ou, simplesmente, como um diário de bordo, no qual traz os relatos das viagens e mudanças vividas pelo personagem Guedali[4]. O 1º e o 12º retrata o mesmo tempo e lugar 21/09/1973, perfazendo uma viagem cuja memória resgata do passado, a história de uma vida marcada por viagens estranhas, que dão ao leitor o suporte de ficção, viajando pelo mundo irreal das criaturas mitológicas e dos monstros alados, até que, no final da viagem, a companhia da não ficção e das dicotomias humanas no seu mundo real.
Guedali está comemorando seu 38º aniversário no restaurante tunisiano Jardim das Delicias, junto da esposa Titã, uma moça loura e seus dois filhos que correm pelo salão. Este é o tempo externo do romance, um jantar. Já o tempo psicológico, 38 anos, desde o nascimento de um homem cujos conflitos são lembrados à mesa do jantar enquanto sua esposa relata, à uma jovem ruiva, a história de suas vidas.
Os personagens principais são Guedali e seus pais Leão e Rosa, seu irmão Bernardo; suas duas irmãs Débora e Mina. Zéca Fagundes e Dona Cotinha; Sua esposa Marcita; Seus amigos: Paulo e Fernanda; Júlio e Bela; Armando e Beatriz; Joel e Tânia; O médico Oliveira que faz a circuncisão; O médico de Marrocos; a parteira; Ricardo, o centauro, amante de Tita; Pedro Bento, o rapaz que montava cavalo nele quando crianças. Esses têm algum mérito como personagem, já que a atuação deles interfere na vida e crescimento do jovem Guedali, enquanto outros são apenas personagens figurativos.
A narrativa conta a história de um menino judeu, que nasce metade homem, metade cavalo. Eis o sugestivo título do romance.
A mãe entra em depressão e demora a aceitar o filho depois do seu nascimento. O pai faz conjecturas sobre o nascimento. Seria castigo de Deus? Passa pela cabeça do agricultor a possibilidade de a mulher ter tido relações com os cavalos, mas descarta a idéia, já que Rosa era uma esposa exemplar. Um médico é chamado, mas nada pode fazer. Então é pedido segredo e o centauro é escondido, para que nem os vizinhos, e nem os membros da comunidade judaica tomem conhecimento de sua existência.
Ele cresce, torna-se um adolescente, e preocupa seu pai, porque além de centauro, ele também possui um pênis extraordinariamente grande. Mulher nenhuma se casaria com ele, nem mesmo uma prostituta o aceitaria, no entanto chegaria o tempo em que ele desejaria estar com uma fêmea, e isso assustava o Senhor Leão Tartakovsky.
Ao mesmo tempo em que seu pênis é uma anomalia, é também motivo de orgulho do jovem centauro. Ele faz reflexões de como as pessoas, que tiveram contato com ele (homens) poderiam se sentir invejosos, sabendo que ele possuía tal "vantagem".
A preocupação do pai tem seu motivo e seu desfecho, ele acaba se satisfazendo com uma égua branca da fazenda vizinha, chamada mimosa. A égua se apaixona por ele, e foge sempre da fazenda para segui-lo.
A vida na fazenda transcorre tranquilamente, até que um rapaz das redondezas descobre que o Senhor Leão tem um animal diferente. O rapaz se esforça para ser amigo do centauro, e um dia o laça como a um cavalo, e o leva para que outros rapazes o conheçam, o centauro foge e conta aos seus pais, o ocorrido, e a família tem que mudar de Quatro irmãos para Teresópolis, próximo a Erechim RS.
Sem poder ir à escola, aprende a ler e escrever com a irmã; faz cursos por correspondência; compra e Lê muitos livros, os melhores: A bíblia, Marx, Freud, Scholem, Monteiro Lobato, Talmud. Aprende sobre a diáspora, Inquisição, pogrons, etc... É na mitologia que encontra a palavra centauro de Ixion e Nefele das montanhas da Tessália e da Arcádia, dos raptos e da figura grotesca e malvada que em nada se parecia com ele.
Num determinado momento de sua vida o centauro se angustia por não ter amigos, tenta fazer amizade com o índio Peri, mas este foge. O centauro se apaixona por uma mulher que vê somente pelo binóculo, manda-lhe recado pelo pombo-correio, mas esse também foge.
Então Guedali, obcecado por encontrar alguém que o entenda, foge da família, vai viver num circo. Lá, tem sua primeira tentativa frustrada de se relacionar sexualmente com uma mulher, a domadora. Ela faz uma gritaria, chamando-o de cavalo, e ele novamente foge, galopando pelos pampas até parar num galpão de uma fazenda, está escondido quando vê uma centaura nua ser perseguida por um fazendeiro, que a laça e lhe aponta uma arma. Guedali avança sobre o fazendeiro que se assusta e morre do coração. Os dois se envolvem, voltam pra fazenda e são recebidos pela viúva do fazendeiro como filhos.
Nesta fazenda, as histórias têm um tom de grotesco, associado à vida de homens animalizados pelo contato rústico do campo e da pouca informação. O fazendeiro acredita que os peões da fazenda fazem sexo com as ovelhas, o velho é um tarado e mantém mulheres para satisfação pessoal, inclusive uma jornalista que se ‘emprega’ na fazenda com o propósito de desmascará-lo, é usada como concubina e depois, quando descoberta, é largada nua pelo campo. A dona Cotinha, sua esposa, não se importa, e convive com as amantes do marido, sem reclamar.
Depois da morte do marido, dona Cotinha assume a fazenda e ajuda os dois centauros pagando a viagem para Marrocos, para fazer a cirurgia que os separaria da parte equina, tornando-os homem completo e mulher completa. Casam-se em Porto Alegre, corrompendo um rabino, já que Tita (Marcita) não é judia, e portanto, não teria o respaldo legal, sob a cultura judaica, de se casar com um judeu.
A viagem, a estadia e a cirurgia, acontecem, e é bem sucedida, apenas vão ter que usar calças compridas e botas para sempre, pois os pés ainda são de cavalos. Eles voltam para o Brasil, e recebem a notícia da morte de Dona Cotinha, e que seu filho toma conta da fazenda, agora. Antes de falecer a velha mulher deixa-lhes uma herança.
Não ficam na fazenda, vêm para São Paulo, compram apartamento e começam uma empresa de exportação, devido aos contatos feitos em Marrocos. Logo que se instalam, são assaltados e os bandidos levam todos os seus pertences, inclusive as botas que são feitas sob medida no Marrocos, são botas ortopédicas. Encomendam outros pares, se trancam no apartamento até que a encomenda chegue. A falta de cultura de Tita incomoda Guedali, ela é uma camponesa, tem vergonha de levá-la nos coquetéis e reuniões. Os amigos falam dos modos de Tita, Guedali arruma-lhe uma professora, e ela progride, mas sempre será uma “grossa do campo”. As patas de Guedali racham, e aparecem pés humanos. Os pelos das pernas vão sumindo, ficando apenas uma pequena mancha escura, como uma mancha de nascença, coberta com alguns pelos.
Mais tarde fazem outra viagem para Marrocos, a clinica está arruinada, cirurgias que não deram certo fizeram o governo fechá-la. Agora o médico vive de pequenas cirurgias clandestinas como o aborto, e o fato de tê-la transformado num tipo de clinica de repouso. O doutor conta-lhes da monografia que fez, mas não chegou a publicar, a respeito da cirurgia sobre o caso deles, cujo título era: Los Centauros Descripción y Tratamiento por la Cirurgía em dos Casos.
Fazem amizade com outros casais, também judeus, Guedali trai Tita com a mulher de Paulo, seu amigo que tem uma filha deficiente. Eles estão morando agora num condomínio fechado e tem dois filhos, gêmeos. Tita conhece outro centauro, que vai até a casa deles para obter informações sobre a cirurgia que fizeram. Ele é de Santa Catarina. Eles se apaixonam, Guedali os surpreende, o centauro foge e é morto pelo vigia do condomínio, que pensava ser um ladrão.
Guedali como autômato vai para o aeroporto e pega o vôo para Marrocos, quer fazer outra cirurgia, quer voltar a ser centauro. Agora o doutor terá que fazer um transplante de uma metade de cavalo no que restou de um centauro, para conseguir o resultado inverso. Chegando lá conhece uma mulher-leoa, uma esfinge mitológica, mas em carne osso e pelos. Lolah pede ao centauro que transe com ela, ele se enoja, mas o animal que ainda há nele aceita. Guedali aguarda a cirurgia. Lolah quer que ele vire homem-Leão, mas ele quer ser centauro. No dia da cirurgia, Lolah foge da gaiola e ataca o doutor, enquanto ele está se preparando para operar Guedali, ela não quer vê-lo operado. Estraçalha a parte do cavalo que iria ser transplantada em Guedali, e o auxiliar se vê obrigado a matar Lolah, seis tiros.
O médico é árabe, perde sua preciosa esfinge e desconta a raiva em Guedali. hama-o de judeu suCjo, diz que os judeus tiram tudo o que eles, os árabes, têm.
Retorna ao Brasil, mas não para São Paulo, vai para o Rio Grande, rever os pais que o aconselham a voltar para a esposa.
Depois disso, é Tita quem conta sua versão da mesma história, para uma moça loira que está junto deles no restaurante tunisiano. Não existem centauros e sim um tumor cerebral que faz Guedali distorcer toda realidade e se achar um centauro. Quando a encontra na fazenda, Tita está realmente fugindo do seu pai que bêbado, tenta agarrar a filha adotiva. Sua mãe, dona Cotinha, acolhe Guedali e o ajuda para que viaje e faça a cirurgia do tumor cerebral.
E tudo termina como se o Jardim das Delicias, fosse o jardim da volúpia no qual a liberdade é mais sexual, que social, pois Guedali agora pensa nas duas mulheres que estão na sua frente, sua esposa e a loira, que, repentinamente, cria laços de ligação com Guedali e a sua história.


ANÁLISE
No romance o autor não deixa passar a oportunidade de descrever a história judaica. Mesmo sendo centauro, ele fez todos os rituais da religião judaica, a circuncisão, o bar-mittzvah (SCLIAR, 1983, p. 60), comemorava os jejuns de Yom Kipur, a Páscoa, o Ano Novo Judaico. Narra a dispersão pelo mundo, como viveram nos kibuts, como fugiram dos pogrons e chegaram ao Brasil pelas mãos do Barão Hirsch (grande acionista da estrada de ferro). Dos cavalos negros dos cossacos, na Rússia. Descreve todas as localidades em que os judeus fixaram residência no RS. Cita o ganho da terra para limpar e produzir. A presença dos índios que aqui habitavam, e a tentativa de fazer amizade com um menino indígena, o qual ele chama de Peri, a troca de presentes, ele ganha uma flecha e dá seu pulôver em troca, mas nunca mais vê o amigo. Lembra 1948 e a proclamação do Estado de Israel. Lembra 1893, e a revolução liberalista e a lenda sobre um monstro, metade homem, metade animal, que entrava nas tendas, raptava os soldados, e degolava-os próximo ao rio, mas que não era o personagem desta história. Lembra da economia brasileira, da inflação como obstáculo para os que tinham que trabalhar com exportação, como ele e seus amigos (judeus de São Paulo). De Getúlio Vargas, Jango e Brizola. Do medo que os paulistas tinham dos candidatos a presidentes, que vinham do Sul. De 1962 das greves, comícios e o dólar disparando. Relembra a invasão dos mouros na península Ibérica. O Muro das Lamentações. A Fortaleza de Massada, último reduto da resistência judaica contra os romanos. Do preconceito tanto judeu contra os gói[5], quanto dos brasileiros contra os judeus, dos paulistas contra nordestinos, dos judeus contra os árabes e vice versa. Vê o índio como uma figura grotesca, igual a ele, que sofre a mesma discriminação. Descobre que todos os seus amigos também são ou foram monstros, um tinha rabo, outro escamas, outros têm pelos, enfim, todos têm anomalias. Cita os casamentos entre consangüíneos judeus, de onde saem filhos defeituosos.
E é nessa miscelânea de preconceitos que o narrador costura a história, na qual o homem é prisioneiro de seus próprios fantasmas.
Já no título o autor escolhe um aspecto dual entre a figura mitológica do centauro e o Jardim das Delícias. Enquanto o centauro é o símbolo dos conflitos humanos que limita o homem entre razão e instinto, o Jardim das Delicias simboliza a libertação, ou pelo menos a cura momentânea para tais conflitos. Vejamos de onde surgiu o Jardim das Delícias:
Jardim das Delicias Livro escrito pelo sheik Nefzaui, na Tunísia, por volta dos anos 1349 e 1433, revela a arte de amar à moda árabe. Através de histórias, receitas e conselhos, o livro revela um pouco do que se passava nas tendas, casas e palácios das mil e uma noites. (LERRER, ver referência no link terra planeta na web)

Ele, judeu, Casa-se com uma não-judia, fato que o deixa dividido, pois a mãe não aceita os costumes estranhos da nora. Se antes a anomalia era vista de fora pra dentro, agora ele via a mesma anomalia de dentro para fora.
“Minha mãe não se dava bem com Tita – ela dizia – Ela não é nossa gente – nunca vou me acostumar com ela.” (SCLIAR, 1983, p. 114/115)

Num certo momento ele não quer estar dividido e faz a cirurgia, quer dizer, escolhe um dos lados, e deixa de ser centauro para ser homem completo “ser homem normal”. Porém quando é traído, tem desejos de voltar a ser judeu, de ser a figura mítica que cavalga os pampas gaúchos, mas essa cirurgia se torna impossível.
Toda narrativa condiz com o duo sofrimento do centauro que tenta se inserir numa sociedade em que as diversas culturas se fundiam. Prova cabível disso são as citações de duas lendas gaúchas. A Lenda do Negrinho do Pastoreio (SCLIAR, 1983, p.) que trouxe um elemento novo à nação escravocrata. O menino que, sofrendo todas as atrocidades, é ajudado por seres fantásticos, a se livrar de um Senhor malvado. Sociedade perversa, mas que já se conscientiza e se vê com anomalias. A Lenda da Salamanca do Jarau,(idem) no qual já se apresenta elementos da cultura mouro(árabe), se ajustando na Nova Terra, vejamos um trecho da lenda:
O encantamento foi quebrado com uma grande explosão. Das furnas saíram os dois condenados, transformados em um belo par de jovens. Casaram-se e trouxeram descendência indígeno-ibérica aos povoados do Rio Grande do Sul. (Ver link com a Lenda da Salanca do Jarau)

Assim como o narrador se preocupou com o negro e o índio ou bugre, também trouxe a baila outros elementos para discussão, por exemplo, o preconceito contra judeus: “O judeuzinho.” (SCLIAR, 1983, p. 36)“ Os judeus mataram Cristo, os judeus são gananciosos.” (SCLIAR, 1983, p.92) ou ainda entre judeus e árabes: “Chama-o de judeu sujo, diz que os judeus tiram tudo o que eles, os árabes, têm.” (”SCLIAR, 1983, p) E com esses elementos, toda carga aflitiva que é depositada num ombro humano, o preconceito.
Ele se torna uma anomalia, quer dizer, de normal, passa a ser patológico. Anomalia segundo Durkheim pode “tanto ocorrer no organismo humano, quanto no organismo social” (SILVA, 2006, p111)
Para Durkheim mesmo o crime é um sintoma normal, desde que controlável, pois o crime é inevitável numa sociedade em que se tenta aplainar diferenças. O que se deve cuidar é o estado da normalidade, que não pode fugir do controle:
Não aplicar regras para distinguir o normal do anormal seria incorrer em graves erros (...) O ato que ofende a consciência coletiva chama para si uma repressão penal, o crime sempre existiu e sempre existirá, porque é impossível à consciência coletiva se imponha universal e uniformemente em todas as consciências individuais. (...) O crime é, pois, necessário porque ele se liga ás condições fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade. (SILVA, 2006 p. 114/115)

Se o preconceito existe, e existiu, também, o modo de repreensão passou a vigorar através da necessidade de que o crime de preconceito fosse freado. O fato das lendas gaúchas terem sido apresentadas como uma vaga lembrança infantil, toma agora outro valor. O valor da consciência coletiva.
Se para o judeu o árabe representava um estorvo, para o árabe o judeu tinha a mesma conotação. Se para o índio, o colonizador era o monstro que chegou como um centauro, meio homem, meio animal, para o imigrante, o índio, também representava um ser diferente. Portanto o crime do preconceito existia de todos os lados, como um defeito congênito. Era uma anomalia que foi sendo corrigida ao longo de muitos séculos, mas ainda não dada alta aos pacientes.

CONCLUSÂO
Moacyr Scliar toma emprestada a figura mítica do centauro para descrever os aleijões promovidos pelo preconceito. A narrativa, embora traga representantes de várias etnias, descreve todos com algum tipo de anomalia perante a sociedade. Mesmo o homem tímido ou a mulher do campo, não escapam aos olhos atentos do autor, quando inseridos numa cultura ou região diferente, é obrigado a viver e conviver.
Para o autor, o personagem fez as tentativas de voltar a ser um, quando era outro, evidenciando aqui a possibilidade das máscaras sociais que cada ser humano é obrigado a usar para parecer igual, mas que na realidade jamais será. Um índio será sempre um índio, assim como um judeu será sempre um judeu, haja vista a determinação nesses homens de manterem suas culturas, embora hoje já meio desbotadas, quase sem cor.
O preconceito atinge todas as nações, as regiões de um país, as classes sociais, até atingir a menor célula, que é a própria família, os amigos os vizinhos. Sempre numa escala do mínimo para o máximo e não o contrário.
A anomalia social não obteve do médico Scliar a cura, nem a alta. No entanto ele teve o cuidado de apontar o caminho do prazer, da satisfação pessoal, como abrigo no qual o homem pode viver sem medos e nem limites.
O jardim das delícias, promove, pra o homem livre das convenções religiosas, a liberdade de busca do prazer, que segundo Freud é o elemento que não se importa com os limites fronteiriços, pois é a satisfação do homem individual.


REFERÊNCIAS

LERRER, Débora F. O Jardim das Delícias, O Livro Muçulmano dos Prazeres
http://www.terra.com.br/planetanaweb/transcedendo/corpo/o_jardim_das_delicias.htm Acesso em 03/11/2009
VOLPATO, Rosane.Lendas do Sul - Salamanca do Jarau
http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendasalamandradojarau.html
Acesso em 03/11/2009

SCLIAR, Moacyr. O Centauro no Jardim. 2ª ed. L&PM Editores LTDA, Rio Grande do Sul, 1983.
SILVA, José Otacílio da. Elementos da Sociologia Geral. Marx Durkheim, Weber, Bourdieu. 2ªed. EDUNIOESTE, Cascavel, 2006.

[1] Artigo proposto na disciplina de Literatura Brasileira
[2] Acadêmica do 3º ano do curso de Letras/Inglês da UNIOESTE/2009
[4] Guedali é um nome que faz referência á Guedalia, um judeu justo, que foi assassinado, pelos próprios judeus, por tentar preservar-se junto aos babilônicos, quando da invasão à Israel. Em honra a este judeu foi instituído o jejum de Guedalia.

[5] Gói, ou goim: Termo que designa as pessoas não judias, pelos judeus.

Amar, Verbo Intransitivo

O Processo de Aculturação: Segundo a perspectiva Modernista de Mário de Andrade

Regina CHAVES (UNIOESTE) [1]

RESUMO: Nossa proposta é explorar na obra Amar Verbo Intransitivo, o estilo e toda a riqueza do contraste Modernista, enquanto a psicanálise de Sigmund Freud (1974) expõe o mal-estar na civilização como um mal necessário para a subsistência da civilidade e Simone Beauvoir (1980) explica a função da mulher como mantenedora da sociedade patriarcalista na universalidade social. Finalmente, discutiremos a contradição entre a atitude paternalista, que, embora sujeito ao moralismo vigente, se apresenta emancipadora e contraditória. Fato que nos possibilita reexaminar outra noção de amor, no qual o desejo transcende do individual para a contextualização social, segundo os aspectos químicos do neovitalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Patriarcalismo; Literatura Brasileira; Neovitalista; Modernismo;

Introdução

Um questionamento se fez presente para que este trabalho tivesse inicio: O que Mário de Andrade quis dizer em carta ao redator, quando salientou sua insatisfação quanto às análises feitas pelos críticos da obra Amar, verbo Intransitivo, quando negligenciaram a ótica neovitalista? Prontificamo-nos a prescurtar o olhar inovador de Mário de Andrade ao mostrar o humano nas suas máscaras sociais, enquanto, num jogo estratégico, alterna cenas, episódios e ironias, descrevendo o conflito do Movimento Modernista na sua questão fundamental: Cultura Brasileira na íntegra ou Cultura brasileuropainizada? Vejamos o trecho da carta que chamou nossa atenção:

O livro está gordo de freudismo, não tem dúvida. E é uma lástima os críticos terem acentuado isso, quando era uma cousa já estigmatizada por mim dentro do próprio livro. Agora o interessante seria estudar a maneira com que transformei em lirismo dramático a máquina fria de um racionalismo científico.
(ANDRADE, 1944, p.153)

A partir desse questionamento buscamos identificar o que Mário de Andrade (1944) chama “doutrinas de neovitalismo”[4] sem, contudo, abandonar a linha psicanalítica de Sigmund Freud (1974) e Simone Beauvoir (1980) que se tornaram alicerces, nos quais o autor se fundamentou para explicar, de modo complexo, a sociedade naquele momento. FREUD (1974), por exemplo, explica a sexualidade como força motriz que comanda a civilização humana em todas as áreas sociais. Embora o medo seja propulsor dos atos humanos é na sexualidade que encontramos a química necessária para subsistência. Simone Beauvoir (1980) nos faz refletir o porquê da distinção homem/mulher cujas funções estão socialmente designadas, quer sejam acordadas e/ou impostas. E o que motiva a durabilidade deste estranho processo dualístico de ser homem ou mulher na relação que pode não estar associado à relação de poder.

1 - Amar, Verbo Intransitivo

Amar, verbo Intransitivo nos mostra numa das várias facetas, que o patriarcalismo está vincado na instituição casamento, no qual a moral está cingida como instrumento de segurança do todo, seja qual for o critério, será sempre o melhor possível diante dos fatos que teimam em tornar-se verdade. Na voz de Mário de Andrade, publicada no ano de 1927 e classificado pelo autor como idílio[5], a ironia dá ao autor as mestras necessárias para compor sua obra Modernista.
Olha por sobre o romance, como se olhasse pelas frestas de uma sociedade que se desenha buscando educação, arte e empregados importados dos recônditos europeus. São os novos ricos brasileiros, que enfeitam suas bibliotecas com volumes de livros, mas se enfadam apenas em pensar lê-los, preferindo mesmo os “folhetins que são breves”. Enquanto isso, o oposto acontece. Os estrangeiros chegam de mansinho e com bagagem cultural e repulsa pelo estilo brasileiro de ser, se instalam e ao final são mais brasileiros do que pensam.
A narrativa, predominantemente em terceira pessoa, apresenta-nos um narrador onisciente, que sabe tudo, de todos, sonda o âmago de cada personagem, e parece entender mais de Fräulein Elza, pois é através dos olhos de Elza que descreve os detalhes da casa, da família, da cultura brasileira e da cultura alemã. Narrador que, vez por outra, se torna intruso, colocando-se em primeira pessoa, fazendo comentários, críticas, expondo uma idéia, pedindo aceite do leitor.
O tema central da obra é o aprendizado sexual de um adolescente, enquanto aborda a adaptação dos imigrantes à agitada Paulicéia. Os personagens têm personalidades lineares. Fräulein Elza – Alemã de trinta e cinco anos, professora de piano e de língua alemã, governanta. Carlos Alberto – divide o papel de protagonista com Elza, adolescente, quinze anos filho de D. Laura e Felisberto Sousa Costa – patriarca da família. As três filhas do casal: Maria Luíza – doze anos, Laurita – sete anos e Aldinha – cinco anos. Luís – jovem burguês, atendido pelos trabalhos de Elza, é personagem figurativo, assim como Tanaka – criado da casa.
Quanto à estrutura, neste romance, as passagens são narradas como se fosse uma série de flash back[6], não apresentando uma seqüência narrativa comum, abrindo entre os fatos algum distanciamento. A palavra FIM aparece, mas o autor pede ao leitor para acompanhar um pouco mais a história, e nesse um pouco mais, oito páginas são necessárias para o desfecho.
Espaço geográfico: São Paulo/Rio de Janeiro que se constitui parte da nação adquirindo dimensão simbólica entre os contrastes Alemanha/Brasil
Ambiente, Vila Laura na Avenida Higienópolis, a casa da família, e a viagem ao Rio de Janeiro para convalescença da filha dos Souza Costa, onde passeiam pela praia e Tijuca.
Tempo: inicia-se no dia da contratação de Fräulein “fins de inverno” e primeiro ou segundo dia de setembro quando ela chega à casa dos Souza Costa. Fevereiro festa de carnaval na avenida, último encontro. As crianças têm um ano a mais ao final da narrativa.
Conflito: a narrativa expõe conflitos psicológicos: de Fräulein Elza entre razão e desejo. De Carlos que se apaixona por uma ‘aventureira’ que buscava casamento e dinheiro. Do casal Souza Costa ao ver se aproximar a adolescência do filho. E conflitos externos: quando Dona Laura resolve pedir a Elza que vá embora e a farsa para surpreender o rapaz no quarto da governanta, eis o clímax da narrativa.
Fräulein Elza tem, entre as funções de professora de língua alemã e de música, o propósito específico de iniciar no amor, o jovem Carlos. Souza Costa raciocinava segundo sua posição de patriarca burguês e tinha por objetivo proteger o filho de aventureiras usuárias de éter e morfina que recheavam a cidade paulistana, e eram a principal fonte de diversão dos adolescentes.
Este é o relato comum, de uma história de amor planejada, cujo desfecho ocorreu previsivelmente pelo estranho contrato entre uma mulher ‘da vida’ e um chefe de família. Parece normal. Mas o que nos chamou a atenção, efetivamente, não foi o caso de amor entre Elza e Carlos, e sim a contraditória atitude do patriarca em colocar na sua casa uma mulher para seu filho, que seria também a professora de suas filhas. Longe de enxertar falso moralismo, e sim percebermos nesta fresta, o segredo ou a essência do romance. A contradição ocorre justamente ao contextualizarmos a obra ao seu tempo (1927), somado ao contraste lingüístico, no qual o autor expõe um falar suburbano contrapondo aos ideais da cultura clássica européia, como Rembrant, Schiller, Goethe, Nietzsche, Freud, Bach, desenhando, ao nosso entender, o relacionamento mais conturbado do romance.
A narrativa, mesclada entre clássicos europeus e brasileirismos, denota que o autor imprimiu em sua obra, o padrão coloquial brasileiro contrabalançando valores culturais europeus. A ousadia na linguagem evidencia a luta Modernista por uma língua próxima do falar popular, exemplo: A duplicação da negativa: “Fräulein não é bonita não” (ANDRADE, 1944, p. 58); Os neologismos, com a junção das palavras: cacete+chateação “caceteação” (idem, p. 97); e “caceteando” (idem, p. 144); “malacabada” (idem, p. 55). Verbos conjugados em tempos diferentes formando uma só palavra: fogefugia, brincabrincando (idem, p. 56); “chorachorando” (idem, p.139).
Retomaremos no final do trabalho, a provável intenção do autor ao usar esses neologismos, segundo a tese a que nos dispusemos advogar.

2- O mal-estar na civilização, segundo FREUD (1974)

A psicanálise de FREUD (1974), ao explicar o homem e a civilização, teoriza sobre o apego aos deuses ter advindo do terror sobre as coisas que não entendia, e mesmo quando o conhecimento lhe trouxe algumas respostas, ainda assim, necessitava de proteção para que o medo ou a angústia não o dominassem. É necessário viver, assim como para viver, é necessário se proteger. O patriarcalismo nasce dessa perspectiva. O pai e a mãe devem proteger seus filhos, ensiná-los seguindo os padrões culturais e morais que lhes foram ensinados e assim sucessivamente. Esta proteção poderia incorrer em repressões, gerando neuroses psíquicas, que o homem carregaria pela vida adentro.
“A criança humana não pode completar com sucesso seu desenvolvimento para um estágio civilizado sem passar por uma fase de neurose, às vezes mais distintas, outras, menos [...] mas têm que ser domadas através de atos de repressão.” (FREUD, 1974, p. 56).

O mal-estar na civilização advém dessa proteção, a repressão como elemento de persuasão se transforma num mal necessário, e as neuroses apresentam-se, quando esta repressão atinge graus intoleráveis. Por isso repreensão deve ser ministrada criteriosamente para que a auto-estima não seja prejudicada:

A auto-estima do homem seriamente ameaçada exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade, movida, é verdade, pelo mais forte interesse prático, pede uma resposta.
(FREUD, 1974, p. 27/28)

A resposta nem sempre é satisfatória, porém, os humanos precisaram continuar subsistindo apesar dos questionamentos. É na ancestralidade e na posteridade familiar que nutrem o humano da vontade de continuar, e muitas vezes, é o que o faz buscar equivalente proteção para além dos laços familiares, até alcançar o divino.

O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, e particularmente a que é demonstrada na morte, recompensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhe impôs. (FREUD, 1974, p. 29)

A tarefa é comunitária, o bem comum exige regras para promover a harmonia ou restabelecê-la. “A civilização poupa a tarefa de defesa do homem em frente aos poderes adversativos que ameaçam sua vida.” (FREUD, 1974, p. 27). A experiência é o pilar de uma sociedade protetora, pois o homem não consegue visualizar o perigo na tenra idade. Quem senão a família para amparar esse primeiro cambalear?

Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (FREUD, 1974, p. 30)

Quando pensamos a obra andradiana, percebemos a necessidade do patriarca Souza Costa em manter a unidade familiar e salvaguardar os membros do clã de possíveis fortuitos que colocassem em risco a estrutura do que representava a ‘civilização’ dos emergentes burgueses. Um objetivo que se estabeleceu de maneira contraditória, até grotesca para os idos de 1927, tempo em que a moralidade religiosa cerceava o nicho familiar como extensão da obra divina.
Fácil apostar que o Sr. Souza Costa teria o cuidado de arrumar uma amante para o filho, mas difícil concordar com a possibilidade dele a colocar na sua casa, onde outras três filhas seriam educadas pela mesma ‘amante do filho’.
Mário construiu através do viés freudiano, uma família protetora para Carlos e lhe deu seu primeiro amor, e sem mais, nem menos, diz ao seu leitor que Carlos havia se adiantado, e conhecido outras mulheres, justamente da forma que seu pai temia que o fizesse, então, para o leitor atento, o propósito fora nulo? Note, porém, que a relação e o desfecho da história privaram Carlos da inocência com respeito ás mulheres, afinal ele tinha mais conhecimento do que o pai ou a própria Elza podiam prever. Ele tinha autonomia sobre seus desejos e sobre suas ações. Ele amara uma aventureira. É assim que o narrador a descreve: De elevada intelectualidade, mas diminuta como mulher nos moldes patriarcais da época, uma prostituta como outra qualquer: “Com cem bagarotes então, a gente caminha mais um pouco e a encontra, no largo do Arouche, novinhas, bonitas, ítalo-brasileiras, [...] por cinqüenta [...] por dez mil-réis...” (ANDRADE, 1944, p. 143).
A dualidade entre razão e emoção de Elza é a ferramenta para acrescentar e estabelecer o objetivo do autor para a narrativa. Este é o ponto que a diferencia das demais, pois embora estivesse em conflito com seu “homem-do-sonho”, era movida pelo “homem-da-vida”, enquanto Carlos com seu ar juvenil “tinha uma graça e doçura mesmo femínea” (idem, p. 68), também se utiliza da razão e da emoção para buscar as experiências que Elza lhe acena. Dualidades que simbolizam satisfatoriamente o processo neovitalista, que explicaremos mais adiante.
A bandeira modernista estava içada, e a liberdade de criar garantida. Mário de Andrade usou de liberdade. A dose de sofrimento administrada a Carlos estava dentro dos padrões freudianos da normalidade, tudo regado o posterior amparo, carinho e certa dose de doçura da ‘coletividade’ Souza Costa. A família burguesa paulistana era apenas um elaborado disfarce para o autor explicar o momento literário, cultural e social, que ele, Mário, estava visualizando, estudando e contrapondo, sob o manto romanesco.

3- A mulher na concepção universal

A sabedoria psicanalítica freudiana, embora traga lume à narrativa, sob nosso ponto de vista, não consegue explicar todas as peripécias dos Souza Costa e de Fräulein Elza, quando sob a batuta de Mário de Andrade, pois que foge ao seu tempo e nos alcança. É o enfoque de Simone de Beauvoir (1980) que esmiúça a função feminina nessa concepção universal de sociedade. Ao incorporarmos sua visão sobre ser homem/mulher na universalidade, não abandonamos as teorias de Freud, ao contrário, endossamos, já que BEAUVOIR (1980) utiliza-se delas para estudar o viés feminino na questão. Segundo a autora, o patriarcalismo existe por acordo pré-estabelecido para subsistência da civilização. Para o que Freud chama de proteção, BEAUVOIR (1980) chama de condição estabelecida em comum acordo:

Portanto, não é geralmente por amor que se resolvem os casamentos. Está implicada na própria natureza da instituição. Trata-se de transcender para o interesse coletivo a união econômica e sexual do homem e da mulher. (Beauvoir, 1980, II, p. 175)

A condição de fragilidade supriu a mulher de outra saída para realizar-se, enquanto o homem ocupava seu trono de superior mediante acordo ou determinação da própria mulher que escolheu vencedores para dar aos seus filhos o melhor da genética:

Desde a infância, tenha querido realizar-se como mulher ou superar as limitações de sua feminilidade, a menina esperou do homem realização e evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de São Jorge, é o libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da felicidade: é o príncipe encantado. (BEAUVOIR, 1980, p. 66)

O homem por sua vez, ocupou seu lugar de destaque, superior em força, encontrou o auditório perfeito para criar o seu espaço de dominação, tendo de antemão, êxito garantido.

O marido compraz-se geralmente nesse papel de mentor chefe. Ao fim de um dia em que conhece dificuldades em suas relações com iguais, em que tem de submeter-se a superiores, ele gosta de se sentir um superior absoluto e oferecer verdades incontestadas. (idem, p. 222)

Usando as teorias sobre sexualidade, como o Complexo de Electra e o Complexo de Édipo, expressadas por Freud, BEAUVOIR (1980) coloca sobre os ombros do feminino a responsabilidade pela escolha vantajosa na posição de ser o “Outro” na dualística homem/mulher. Fräulein era a mulher universal no seu ‘homem-do-sonho’ e buscava no casamento, o descanso da luta que travava com o seu eu exterior. Ela desejava uma família. Escolhera seu homem, sua cidade e a sua casa. Programara seus dias e noites. Esperava o momento propício para usufruir desta felicidade. O momento em que pudesse voltar para a Alemanha.

O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua dignidade social integral e realizar-se como amante e mãe. (idem, p. 67)

Para BEAUVOIR (1980), a mulher-mãe usa seu poder para firmar a masculinidade que admira no homem quando educa seu filho, enquanto o pai o instiga ás adversidades. “O menino apreende a superioridade paterna através da rivalidade: ao passo que a menina a sofre com uma admiração impotente, o complexo de Electra.” (idem, p. 29). O homem-pai exerce poder para amparar e mimar as filhas no aconchego do lar, enquanto a mãe é a adversária que lhes rouba o objeto de desejo. A menina vê no pai a força e a proteção que deseja para si, e ao se tornar mãe dá continuidade ao ciclo educando seus filhos a serem corajosos e heróis.
Nesses moldes podemos perfeitamente encaixar os Souza Costa: três filhas mimadas e dengosas “Maria se pensa mocinha e quer ser tratada com distinção” (ANDRADE, 1944, p. 70); Carlos, um menino forte, machucador “Virilidade guapa” (idem, p. 68); um pai protetor que usa de subterfúgios para garantir um espécime à sua altura. No entanto Dona Laura é omissa neste seu papel de cooperadora. FREUD (1974) diz:

Sem dúvida, o meio mais simples para a criança seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas, que desde a sua infância, tem amado [...] a barreira contra o incesto, faz a sociedade defender-se afrouxando os laços [...] para que o jovem possa apegar-se ás mulheres com laços afetivos equivalentes à ternura infantil, mas sem autocensura. (FREUD, 1974, p. 233/234)

Então surge Elza, um “membro que faltava” ou “Mecanismo novo na casa. Mal imaginam que será o ponteiro do relógio familiar” (idem, p. 54). Ela se torna mãe daquelas crianças e embora abomine o incesto, ensina Carlos a se tornar o homem universal que constituirá para a sociedade emergente, um lar sagrado. Carlos é o filho que chora pela mãe: “Coitado! Decerto perdeu a mãe.” (idem, p. 139). Endossando o conceito Freudiano, temos o romance e a análise concluída e sublinhada por BEAUVOIR (1980). Para o nosso entender, ainda não é o bastante, por isso continuaremos, buscando responder o questionamento levantado no inicio deste trabalho.
Na composição estética de Mário de Andrade (1944), o romance apresenta no idílio, uma tela ou quem sabe os sons para se orquestrar uma questão maior. Questão que fora anunciada em carta ao redator. O autor queria que sua obra fosse analisada pelas “doutrinas de neovitalismo.” (ANDRADE, 1944, p. 153). O autor rompia com a forma e ensejava novo estilo, assim como injetava vida e um olhar perscrutador sobre a sociedade paulistana, e sobre o pensar cultural da sociedade brasileira daquela época. Era um tempo de repensar o Brasil. Era um tempo de voltar o olhar para o que havia de precioso em sua terra. O narrador viu sob o olhar alemão de Elza, um Brasil que Carlos não via, ou não se importava que existisse. O autor elaborou cada passo, cada personagem para invocar a estética da família burguesa paulistana e as suas máscaras hipotéticas de sociedade pseudo-européia. Criou, num ambiente familiar abastado, a possibilidade de um amor terno e principalmente de um amor transformador. Contrastou as dualidades, e pesou pós e contras que transcenderam a base simplista do que significaria: lar, família, amor físico e amor espiritual. Elevou-os para o social e universal. Percebeu que para explicar as relações humanas precisaria da filosofia, da psicanálise, da física e da química para explicar o processo do homem como ser vivo e participativo da vida, quer dizer, ele não é um animal que sofre algum tipo de evolução ou mutação sem poder decidir por ela. O homem decide e deseja essas mudanças, mesmo que a princípio se apresente involuntária, por isso o neovitalismo.

4- A química Neovitalista

A química que emana das relações humanas atuam como mola propulsora. O que a física chama de ação e reação. A troca de informações ocorre involuntariamente ao mesmo tempo em que as emoções são acionadas e estruturalmente processadas pelo neurosistema. Primeiramente reagindo dualisticamente entre razão e matéria (necessidade racional), mais tarde, a reação entre necessidade e desejo (razão/emoção). É no conceito de força de continuar a viver que nasce o neovitalismo, mas viver da melhor forma, ou seja, de preferência buscando o prazer, como diz a teoria freudiana. O autor de Amar, verbo Intransitivo, percebe o processo a transformação das diferenças, e dá pistas quando diz: “Há todo um estudo comparativo a fazer entre a naftalina Max Reger e os brometos em geral” (idem, p. 73). Ora, Max Reger não era químico e sim maestro. Então ele usa a comparação química e a música para testamentar valores culturais nacionais e estrangeiros, observando-os á distância, crítico que era.
O amor de um adolescente e de uma mulher adulta não tem necessidade de transcender o quarto dos amantes, a menos que seja para deleite ou curiosidade de alguns leitores. No entanto, o autor invoca os brasileiros como se invoca a uma nação, anunciando, por exemplo: “Sossegue, brasileiro, por enquanto eles não conspiram nada” (idem, p. 67) ou “Não vale a pena lutar brasileiro” (idem, p. 137). Em que, o amor dos dois, poderia tumultuar o sossego de uma nação ou colocá-la de sobreaviso? Ao nosso entendimento, esta é a fresta para expor o conceito de neovitalismo, que se origina do vitalismo, vamos a ele:

O vitalismo sofreu um grande abalo em 1828, quando pela primeira vez foi sintetizada em laboratório uma substancia orgânica (a uréia). Isto reforçou o ponto de vista daqueles que propunham ser o fenômeno da vida inteiramente explicável pelas propriedades físico-químicos da matéria que constituía os seres vivos. Surgiu então o chamado neovitalismo, que, embora admitindo a influência dos fatores físicos e químicos nos processos vitais, considerava estes últimos como não redutíveis inteiramente às leis da matéria que os constituía. Atualmente o termo vitalismo tem sido comumente empregado para designar concepções que são na verdade neovitalistas. Reich, que foi quem desenvolveu e sistematizou melhor o conceito de bioenergia a partir da concepção freudiana de libido, declarou a influencia recebida de vitalistas como Driesch e Bergson (REGO, 2009)

O neovitalismo explica a bioenergia que emana de todo ser vivo como sendo responsável pela re-organização do homem no seu ambiente. Um ser complexo que não se limita simplesmente á evolução Darwinista e muito menos ao estático determinismo, mas que se organiza fisicamente, biologicamente e emocionalmente através das relações sociais que desenvolve, isto é, se desenvolve através a razão e da emoção. São duas essências na mesma matéria, “O vitalismo propriamente dito, é integralmente dualista.” (REGO, 2009)[7], duas energias, sendo uma responsável pelo ciclo da vida, e outra, pela química que emana através das emoções, mantendo os corpos vivos e em constante movimento.
Mário de Andrade (1944), muito além do seu tempo, explica que essa energia atinge proporções ainda maiores, tanto, que vale apontar rapidamente a cultura fronteiriça, amplamente debatido nas teses pró-étnicas, por exemplo. A diferença desses teóricos e de Mário de Andrade, é que Mário percebeu o processo como algo positivo, enquanto os antropólogos e filósofos usam-no de base negativa para explicar a exploração das raças. Darcy Ribeiro (1995), assim como Mário de Andrade, fez uma análise positiva do processo de aculturação, o que os diferencia, é a distancia temporal. Ele diz:

Foi desindianizando o indígena, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que fizemos a nós mesmos. Somos, em conseqüência um povo síntese, mestiço, na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque, para nós, a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado (RIBEIRO, 1995, p. 13).

Os conceitos que se utilizam da biologia, da química e da física não foram aceitos pelos críticos na época em que foi editado Amar, verbo intransitivo. Porém, explicaria satisfatoriamente o processo dualístico do homem-do-sonho e o homem-da-vida no conflito de Fräulein; assim como o verbo ser e o verbo amar sendo símbolos dessa dualidade. O corpo humano ganhou status de nação e explica o sonho patriótico Alemão e o fato de Elza não estar na Alemanha. Explica o fato de brasileiros estarem no Brasil, mas esteticamente se pensarem europeus. O principio da matéria e o principio vital estão no mesmo corpo material, enquanto o espírito tem liberdade e a vida movimento. A química no neovitalismo é responsável pela dinâmica da procriação e da manutenção cíclica da vida. A química em Amar verbo intransitivo pode ser equiparada à química neovitalista do amor, primeiramente nos corpos sofrendo a influência do amor carnal, depois transcendendo para o espaço geográfico, social e cultural. “Três quartos de hora depois a bandeira partia rumo a Tijuca.” (ANDRADE, 1944, p. 118)
Não era a família Souza Costa que partia, mas a bandeira brasileira rumo à Tijuca, assim como Elza não era apenas uma mulher, mas um representante alemão vivendo fora de suas fronteiras e dentro do Brasil. O narrador fecha a porta do quarto, na primeira noite dos amantes, desviando o foco dos leitores que o acompanham atentos, e depois se enche de entusiasmo ao narrar o orgasmo de Elza diante da beleza e da exuberância do Brasil na Tijuca. “Ela fremia. Ela vibrava e se entregava inteira aos enlaces faunescos do cheiro e da cor.” (idem, p. 119). Neste trecho do romance, o termo idílio toma a significação pastoril da Bucólica de Virgilio, o amor de Elza não é por Carlos, mas pela fauna brasileira.
Enquanto a química atuava em Elza, atuava também nos Souza Costa. Carlos não sentia ciúmes de Elza, “Desprezava os sentimentos sutis.” (idem). Assim como Elza desprezara-os no inicio: “O samba lhe dava uns arrepios na espinha e uma alegria...musical? Desprezível” (idem, p. 66). A transformação em Carlos é visível, pois a comédia nacional causa aversão em Carlos, que passa a valorizar o gosto clássico da Alemanha de Elza. Maria Luiza sonha com o Jardim Zoológico em Hamburgo e não entendia o que poderia haver de tão extraordinário na Tijuca. Era a simbiose cultural, emocional e física.
A química cumprira seu papel e assimilavam-se, assim como seriam assimilados o tigre japonês e o tigre alemão, afinal, “A aritmética nunca foi propícia aos brasileiros. Nós não somamos coisa nenhuma.” (idem, p. 71). Por que a soma implicaria em 1+1=2, enquanto que, no aculturamento 1+1=1≠. E o campo era fértil, estava muito bem preparado para a nova cultura, eis os elementos necessários:
Aqui o copeiro é sebastianista quando não é sectário de Mussolini. Porém os italianos preferem guiar automóveis, fazer a barba da gente, ou vender jornais. Se é que não partiram pro interior em busca de fazenda para colonizar [...] Porém se o copeiro não é fascista, a arrumadeira é belga. Muitas vezes. Suíça. O encerador é polaco. Outros dias é russo, príncipe russo. [...] Só as cozinheiras continuam ainda mulatas ou cafuzas, gordas e pachorrentas negras da minha mocidade!...Brasil, ai, Brasil! (ANDRADE, 1944, p. 97/98)

A ironia do autor é latente enquanto descreve o tigre japonês e o tigre alemão em estranho confronto na solitária Vila Laura. Os relacionamentos estavam aqui no Brasil, não havia necessidade nenhuma de ir até a Europa para se deixar influenciar pela cultura européia, assim como não precisaria ser brasileiro para entender o momento intelectual do brasileiro, mesmo assim o testamento é claro:
Apalermados pela miséria, batidos pelo mesmo anseio de salvação, sofrenados pelo fogaréu do egoísmo e da inveja, na mesma rocha vão trêmulos se unir. A queimada esbraveja. Os dois tigres ofegam [...] Sufocam, meu Deus! Que deus? Odin de drama lírico, sáxeo Buda no contraforte das cavernas? Mas, porém sobre a queimada Tupã retumba [...] Por enquanto. Creio mesmo que vencerá. Os dois tigres acabarão por desaparecer assimilados. (idem, p. 99)

Relembra o poema de Castro Alves, A Queimada, cuja definição literal do termo, tem por função a derrubada da mata nativa pelo fogo, para plantio de novas culturas. Segundo Mário, A Queimada está além do funcional comum, assim como o calor abrasador e envolvente da relação sexual, simboliza uma relação, que está além da carne, invadindo o espiritual. “Amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores, espirituais.” (ANDRADE, 1944, p. 63).
Deste modo se explicam a deliciosa oralidade musicada dos verbos “queimaqueimando” “fogefugia”, “brincabrincando” e “chorachorando” (idem, p. 56 e 139) em que se estabelece o mesmo processo químico, dualístico e quase sexual na linguagem, na vontade e nas idéias, que ora se apegava com a “cerimônia Tupi”, ora se voltava para o Expressionismo europeu, temperando com o que o modernismo ofereceu de mais marcante: A contradição.

Conclusão

As possibilidades de análises transformaram o amor terno e elevado de Elza e Carlos, num amor terno e patriótico para os estrangeiros que aqui desembarcaram, primeiramente, cheios de desprezo, trazendo uma cultura erudita que o brasileiro logo se afeiçoou e assimilou, e finalmente eles, ao longo de sua permanência, pegam gosto pelo jovem e desajeitado moreno e rijo, que de molenga e desajeitado, passa a ser mais forte e sedutor. Por que mais desajeitada que as canções infantis brasileiras em contraposição à suavidade das cantigas alemãs expostas em Amar Verbo Intransitivo? Mas a simbiose permite colocar lado a lado as diferenças, primeiro para percebê-las grotescas, depois para declará-las ingênuas para então assimilar-se e tornar-se forte e rija.
Diante desta contextualização, fica claro a habilidade do narrador ao compor, o que podemos chamar de Amor pelo Brasil (grifo nosso). Para Mário de Andrade havia a necessidade de simbolizar no emocional humano, este processo de aculturação que ocorre no universal. A idéia de nação é uma forma sintetizada do que chamamos civilização, e ambas nascem a partir do dinamismo da procriação e da proteção entre os seus. O mal-estar na civilização advinha de um processo doloroso, no qual, a aplicação de uma educação poderia acarretar neuroses como um mal necessário. O mal-estar na civilização brasileira advinha de certo sofrimento para os intelectuais que ansiavam pelo conhecimento ultramarino, enquanto se implantava um movimento puramente nacional. Os modernistas foram criticados por ainda manterem seus olhos na cultura européia, porém, com o pensamento além do seu tempo, Mário percebe a simbiose como mal inevitável, necessário e prazeroso, cercado de certo sofrimento pela repressão ministrada entre os seus, mas involuntariamente prazeroso. Seu olhar conseguiu perceber os dois lados na química cultural, pois Elza deixou Carlos e seus sonhos de casamento foram sofrendo pequenas alterações no decorrer da narrativa, perderam sua força inicial, foi se abrasileirando. Carlos foi abandonado por Elza e logo estava envolvido novamente, não com uma negra cafuza, gorda e pachorrenta que despertaram suspiros de saudades no narrador, não, mas por uma holandesa. Forma simbólica que o narrador encontrou de dizer-nos que a simbiose continuaria, pois estava regado de um sentimento terno, nada muito forte ao ponto de interromper o movimento crescente, e também nada tão superficial, que não causasse alguma transformação.
A família de Amar, verbo Intransitivo é como a célula de um corpo maior, se comporta tal qual o corpo, o Brasil é a “Mãe gentil”, aquela que exige que seu filho cresça e seja tão forte quanto ela desejou que fosse, e o brasileiro é o filho que tem pressa e muito que aprender, pois ainda é só um menino, embora esteja se tornando quase homem, tanto nas experiências amorosas recheadas de estrangeirismos, quanto nas reivindicações do Movimento Modernista Brasileiro.

Referências

ANDRADE, Mario de. Amar, Verbo Intransitivo. Idílio. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1944.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: Fatos e Mitos. Vol I, 8ª ed. tradução Sérgio Milliet: Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980.

__________________A Experiência Vivida.Vol II. 4ª ed; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
FREUD, Sigmund. O futuro é uma ilusão. O mal-estar na civilização.
(1929/30). [Trad. de Jayme Salomão]. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1974.
MENDES, Erasmo G. Fisiologias: Crises? Estudos avançados. Publicado em 20/08/1994 e acessado em 29/09/2009
http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a13.pdf
REGO, Ricardo Amaral. Conceitos de Bioenergia. Acessado em 03/09/2009
http://www.ibpb.com.br/Conceitos_bioenergia.doc
RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
PAULI, Evaldo. Filosofia do ser vivo. Capítulo II (§546) Estudo publicado na Revista Científica Simpózio, 1997. Acessada em 25/05/2009
http://www.simpozio.ufsc.br/Port/1-enc/y-micro/SaberFil/FilosNatur/2211y519.html

[1] Acadêmica graduanda do curso de Letras/Inglês 3ª ano pela Universidade do Oeste do Paraná, e-mail chaves.re@gmail.com
[4] O neovitatalismo é bioenergia explicada a partir da concepção freudiana da libido.
[5] Palavra usada como título do poema do poeta grego Teócrito. Idílio do grego eidúllion = “pequena fotografia”, mas que assume no romance de ANDRADE, a significação de um amor por sedução, leve e poético. O termo apresenta também a inspiração pastoril, usada pelo poeta Virgílio em suas Bucólicas.
[6] Flash-back ou analepse: figura de linguagem utilizada pelo narrador para estabelecer ação temporal interna e externa da narrativa.

[7] Conceito extraído da revista eletrônica virtual Simpósio.

sexta-feira, outubro 30, 2009

Espaço no espaço

Que no som das águas me desfaço
Em lágrimas de choro feliz
Pois é nas águas que refaço
O pouco que me desfiz.
Sonhando em altos montes
Em geladas curvas no ar
Soltando sons alucinantes
De quietude a esmagar
Chora alma
Grita
Seu silêncio sepucral
Vive
Mesmo a meia-luz
Tenue linha
Entre o bem e o mal