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quinta-feira, setembro 20, 2007

ROMEU E JULIETA: UMA LIÇÃO DE REBELDIA

ROMEU E JULIETA NA POESIA DE JOSÉ SARAMAGO: UMA LIÇÃO DE REBELDIA[1]

BORGES, Suellen (G. Letras/UNIOESTE).
CHAVES, Regina (G. Letras/UNIOESTE).
SIBIN, Elisabete Arcalá (Mstª Orient. Letras/UNIOESTE).

RESUMO: Pesquisando a irreverência de caráter ideológico, ora explícito ora implícito, do romancista e poeta José Saramago, nos propusemos a investigar a abordagem de um dos temas inscritos em sua primeira fase de produção e discuti-la neste artigo, analisando dois de seus poemas da coletânea “Poemas Possíveis”. Apresentando alguns dos resultados do Projeto de Pesquisa “O Desvendar do Discurso Literário de José Saramago pelo Sujeito Leitor”, estudamos a “paródia” como um dos recursos estilísticos utilizados pelo poeta que expõe sua irreverência em sua releitura do clássico shakespeariano “Romeu e Julieta” sob um pano de fundo no qual tece críticas sociais reveladoras.


PALAVRAS – CHAVE: Romeu e Julieta, Intertextualidade, Releitura.

1 - INTRODUÇÃO
O Projeto de Pesquisa “O Desvendar do Discurso Literário de José Saramago pelo sujeito Leitor”, visa no momento deste trabalho, investigar o contato que os alunos de ensino médio têm com as obras de José Saramago, oportunizando a verificação nas obras, se o autor faz uso da linguagem para recriar o universo ficcional e finalmente, se os recursos estilísticos na construção da linguagem poética são compreendidos pelos alunos leitores.
Para obtenção desta resposta, elaborou-se um questionário sobre eventuais conhecimentos acerca da vida e obra do autor, em seguida, foram escolhidos dois de seus poemas da coletânea “Poemas Possíveis” como atividade de leitura e análise literária, aplicadas em sala de aula de escola particular a alunos de segunda série do Ensino Médio. Através dessas atividades foram, enfim, analisados os resultados obtidos.

2 - A LÍRICA EM JOSÉ SARAMAGO
Antes de ser proposta a atividade em sala de aula, focou-se a figura do escritor para responder a pergunta: “Quem é José Saramago?”
Este escritor português é alvo de grandes polêmicas por. Uma de suas características marcantes configura-se no fato de escrever romances sem o uso de pontuação. Esta técnica inovadora, entretanto, requer do leitor atenção e disciplina para acompanhá-lo em toda a dimensão de sua complexidade narrativa.
O comportamento de um Saramago narrador onisciente intruso dos romances apresenta-o decepcionado com a realidade social, valendo-se de figuras como a paródia para expor sua ironia, num tom quase jocoso, ao reavaliar a historicidade do homem frente à religiosidade e sociedade. Escritor contemporâneo que, ao questionar tais atitudes, trata de assuntos sócio-históricos reveladores do ontem como se fosse o hoje, características inerentes a um escritor que não está preocupado com a crítica, mas com suas próprias convicções e ideais.

3 - ROMEU E JULIETA EM JOSÉ SARAMAGO
A poética de Saramago, contudo, não se distancia muito da proposta de crítica social imbricada em seus romances. A despeito disso, manifesta-se mais comedidamente, sujeito a fatores orientados pela própria estética da poesia. Seus ideais avançam de forma sintetizada, reunindo seus vislumbramentos de realidade em versos que, em sua maioria, apresentam-se como releituras de outras produções, cingidas de sua irreverência peculiar.
Reconhecido gloriosamente através dos romances, Saramago apresenta alguns poemas como subterfúgio de sua veia irônica, sem, contudo, desqualificar sua obra poética, ao contrário, enfatiza através das releituras a essência de múltipla irreverência, ora apresentando a paródia contundente e burlesca nos romances, e ora contemporizando uma, ou outra obra num tom de seriedade e completa preocupação com a figura do ser humano relatado em tais obras. Técnica que, alias, faz com maestria no poema que será analisado:
Julieta a Romeu[2]

É tarde, amor, o vento se levanta,
A escura madrugada vem nascendo,
Só a noite foi nossa claridade.
Já não sei quem fui, o que seremos
Contra o mundo há-de ser, que nos rejeita,
Culpados de inventar a liberdade.


Romeu a Julieta

Eu vou amor, mais deixo cá a vida,
No calor desta cama que abandono,
Areia dispersada que foi duna.
Se a noite se fez dia e, com a luz
O negro afastamento se interpõe,
A escuridão da morte nos reúna

Antes de tudo, importa observar que os dois poemas, na realidade, dialogam entre si numa relação de continuidade, em situação de pergunta e resposta. O título do poema aduz à clássica história de amor e tragédia entre os descendentes de duas famílias rivais, Montéquios e Capuletos, de Willian Shakespeare (1552). É uma peça em cinco Atos, e o eu-lírico utiliza-se da Cena V do III Ato: Romeu tem que ir embora, mas Julieta não quer deixá-lo, e o diálogo na qual está embasado o poema é: Julieta diz a Romeu: “Oh! Vai, a luz aumenta a cada instante. Então Romeu diz a Julieta: Á luz, escuridão apavorante”.
O eu-lírico estabelece a intertextualidade entre a peça e o poema, porém, percebemos que tanto o amor como a morte dramatizada na peça serve, simplesmente, de pano de fundo para que ele, o eu-lírico, transcenda valores, e transforme-a em sensações e sentimentos que a peça jamais poderia dramatizar. Isso porque, o espaço temporal que separa uma de outra é fator de negação dessa possibilidade. Seguindo seu estilo, serve-se da ameaça de separação entre Romeu e Julieta para refletir filosoficamente sobre a relação de poder exercido pelas instituições sociais e das formas que homem se apodera para subverter tal poder.
No primeiro verso, “É tarde amor” Julieta alerta Romeu para o tempo deles que finda, na peça este seriam palavras de despedida, no poema traz nuances de convite que se completa: “o vento se levanta”, uma metáfora das adversidades cujo poder pode quebrar o momento mágico. Metáfora que se completa no 3º verso do segundo poema, de Romeu a Julieta, que diz: “Areia dispersada que foi duna”, explicada mais adiante.
No segundo verso “a escura madrugada vem nascendo”, há uma inversão, pois o que nasce são as manhãs, o eu-lírico retoma o falar apaixonado dos amantes, que por tratar-se de um amor impossível, poderiam encontrar-se apenas à noite. E no terceiro verso explica essa figura de linguagem, “Só a noite foi nossa claridade”. Na noite aflorava a vida e a completude dos sentimentos, e difere da claridade diurna comum.
Nos 4º, 5º e 6º versos há uso do hipérbato, construindo os versos como se constrói um segredo entre dois amantes, pois a oração teria clareza se formulada assim: ”Já não sei quem fui, o que seremos, há de ser culpados de inventar a liberdade, contra um mundo que nos rejeita”. Note-se que há um jogo entre os pronomes da 1ª pessoa do singular e do plural (Eu, Nós), sugerindo que Julieta estaria só e que certamente Romeu se uniria a ela. Insinua a possibilidade de esquecimento, um abandono do “eu” anterior, para o eu que transpassou o obstáculo da vida.
Na construção “o que seremos, Há de ser”, propõe uma pergunta respondida quase que imediatamente “culpados de inventar a liberdade”, e esse verso carrega todo o argumento no qual o eu-lírico se apóia para tematizar o poema, e que será explicitado no decorrer da análise.
“Contra um mundo que nos rejeita”, esse mundo na visão de Romeu e Julieta eram as suas famílias, para o eu-lírico o “mundo” citado no verso abrange as coerções sociais, morais e religiosas num jogo de valores cujos significados filosóficos detectam um olhar no passado com refração do contemporâneo.
No segundo poema evidencia-se a resposta de Romeu ao apelo ou alerta de Julieta no primeiro verso: “Eu vou amor, mas deixo cá a vida/ No calor desta cama que abandono”. Note que o eu-lírico usa o recurso do dialogismo, porém de forma invertida, pois ele não vai afastar-se de Julieta, como mostra a peça, mas vai ao encontro dela, para a morte.
No 1º, 2º e 3º versos há outro hipérbato, vejamos: “Eu vou amor, mas deixo cá a vida/ areia dispersada que foi duna/ No calor desta cama que abandono”. Calor da vida, em contraposição ao frio da morte, porém “em vida” metaforizada por “calor da cama” eles seriam a /areia dispersada pelo vento/.
Este verso explica o primeiro verso no primeiro poema citado anteriormente: /o vento se levanta/, é o vento das adversidades que dispersam areias, /areias que foi duna/, que foi sonho de felicidade, mas que, sem base sólida para se fixar, vagueiam como as dunas carregadas pelos ventos de um lugar a outro.
Na sociedade a base sólida simbolizaria a aceitação da atitude tomada, uma benção com o reconhecimento da igreja e da família para duas pessoas que se amam e decidem ficar juntos.
Para o eu-lírico a tragédia se consumaria se o casal seguisse o senso comum da disciplina, no caso em questão, seria Julieta atender a ordem familiar, enquanto Romeu seguiria a sua sina de assassino, sem o ser.
O 4º verso, “Se a noite se fez dia, e com a luz o negro afastamento se interpõe”, o eu-lírico retoma a inversão entre dia e noite usando do recurso estilístico que enfatiza a potência deste afastamento como definitivo. Romeu preso, e Julieta casada com o homem que seu pai escolhera. Por isso o peso do adjetivo “negro”.
No último verso o desfecho, o gran-finale: que “A escuridão da morte nos reúna”, pois se a noite era o momento em que podiam desfrutar do amor que sentiam então a escuridão da morte será o tempo, da qual ninguém os poderia separar.
No último verso do primeiro poema, como no último verso do segundo poema, o eu-lírico estabelece uma nova visão que se afasta completamente da temática Shakespearana porque nesta, nem é o momento, nem é o espaço apropriado para as reflexões filosóficas, o poema perfaz as cenas sob a ótica de um símbolo maior que o sentimento e mais importante que a morte, a ruptura das convenções sociais para se fazer prevalecerem direitos.
“Culpados de inventar a liberdade”, condenados por quem?
Por um mundo de regras moralizantes no qual o homem está impossibilitado de questionar, de agir por sua vontade, está preso à família, à religião e as convenções sociais. Ao romper esta norma os amantes inventam o que não existe: a liberdade.
Percebemos que, ao tentar fugir os amantes não tinham o apoio da família, mas tinham o apoio da igreja, porém, quando cometeram o suicídio, foram também condenados pela igreja. Na visão do bem comum, não importa os sentimentos, não importa as pessoas, sim as leis, estas têm de ser seguidas para a manutenção harmônica.
Porém, o eu-lírico nos leva a questionar: A quem interessaria a infelicidade desses jovens? O sentimento de uns podem ser levados em conta e de outros não?
Sim, porque a negação da vontade de um, em detrimento da vontade de outro determinou a atitude dos amantes. O ódio é um sentimento, tanto quanto o é o amor, no entanto, o amor dos jovens tinha menor valor que o ódio dos adultos. A relação de poder famíliar está refletida nesta relação de valor.
A ironia por parte do eu-lírico no último verso do segundo poema, quando ele faz uma alusão à máxima matrimonial: “Até que a morte nos separe”, para: “A escuridão da noite nos reúna”, endossa a ruptura, subvertendo valores cristãos.

4 - O SUJEITO-LEITOR DIANTE DA POÉTICA DE JOSÉ SARAMAGO
A partir da pesquisa de campo empreendida entre alunos da segunda série do Ensino Médio de uma escola particular, realizada na cidade de Cascavel, Paraná, não fora constatado qualquer conhecimento tanto sobre José Saramago como de sua poética. Das atividades aplicadas em sala de aula, percebemos grande defasagem no que tange à prática de análise literária, verificadas numa interpretação que observou apenas os elementos citados introdutoriamente pelas pesquisadoras, porém nada espontâneo. Percebeu-se grande dificuldade de assimilação da significação dos dois poemas por parte do alunado, que se revelou não habituado a identificar a repercussão de determinados recursos estilísticos no interior do poema, o que nos possibilitou concluir que esse quadro configura-se, na verdade, comum, uma vez que José Saramago apresenta-se como escritor ainda desconhecido. A despeito disso, notou-se o reconhecimento de autores contemporâneos a José Saramago na ambiência escolar desses sujeitos-leitores.
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização deste Projeto de Pesquisa tornou possível enxergar que o estilo parodístico saramaguiano nem sempre figura no mesmo tom em todas as produções deste autor. Nos poemas analisados, por exemplo, “Romeu a Julieta” e “Julieta a Romeu”, notamos a presença do olhar irreverente de Saramago através do eu-lírico na refutação de certos valores instituídos, buscando naquele que se configura a representação universal do amor trágico: o clássico de Shakespeare, “Romeu e Julieta”, transformado em poesias que, parodiando, não apresenta o tom jocoso ou ridicularizador, e sim, uma releitura em cujo interior perpassam reflexões do eu-lírico de Saramago, que, através de estilizações propõe um outro tom, uma nova luz, deslocando a temática primeira, e propondo outra realidade como forma de anunciar que os valores não são fixos, o homem sim, nas necessidades de transformações.
A temática principal que permeia o lirismo de Saramago influi a rebeldia como característica humana. Ele a encontrou no drama de Shakespeare o que acredita ser comum no homem como ser histórico.

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂNDIDO, Antonio. A personagem da ficção. São Paulo: Perspectiva, 1985.
CERTEAU, Michele de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
COELHO, Nelly Novaes. Escritores Portugueses. Critica e história literária. São Paulo: Quiron, 1973.
HUTCHEON, Linda. A poética na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
SARAMAGO, José. Poemas Possíveis. 5 ed. S A, Lisboa: Editorial Caminho, 1985.
SEIXO, Maria Alzira, O essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.
[1] Artigo proposto para apresentação do Projeto de Pesquisa da Universidade do Oeste do Paraná, sob orientação da professora Ms. Elisabeth Arcalá Sibin, à Disciplina de Literatura Portuguesa.
[2] Os Poemas Possíveis, José Saramago, (p.106, 107)

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