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quarta-feira, setembro 12, 2007

O GUARANI: Filme e Obra

Um dos maiores clássicos da Literatura Brasileira, a obra Alencariana, “O Guarani”, surge como elemento de reivindicação de uma autonomia à produção genuinamente brasileira e tentativa de historicização da formação da raça que cá habitava, embora figure numa proposta hipotética.
Buscando um passado mítico para conferir consistência à criação de um herói, “O Guarani” de Alencar é a representação do genesíaco, congregando elementos que acenam fortemente à construção do mito de caráter endêmico, ao mesmo tempo em que encena a evasão temporal na retomada de valores medievais.
A partir da obra e de sua adaptação cinematográfica, divisa-se uma série de elementos que se interceptam, bem como importantes aspectos que se distanciam.
Importa principiar pelo papel da natureza explicitado nas duas composições: enquanto represente simples pano de fundo, em Alencar ela é concebida em toda a sua dinâmica mítica, excedendo sua expressão de mero cenário coadjuvante, mas exprimindo a idéia de gestação e origem de todo um povo. Confere-se grandiosidade aos cenários naturais na acentuação da cor local que distingue o Brasil, naquele ínterim do restante do velho mundo, que conhecendo de forma tal, o homem a integra harmoniosamente, o que não é destacado no filme. Além disso, vale salientar que na obra o homem é parte tão inerente à natureza que, como o retratado no final da obra, seu contato acaba despertando o homem para seu lugar de origem, seu ímago-mundi, momento marcado por uma série de grandes transformações, tais que são indicadas no enredo através de imagens diversificadas.
Um ponto interessante a ser analisado pode justificar a desimportância dada à natureza no filme, que parece primar pelos conflitos produzidos no interior da casa de D. Mariz: Álvaro X Loredano, Loredano X D. Mariz, Isabel X Cecília, Portugueses X Aimorés, com exceção das cenas representando o embate entre Peri X Loredano, Peri X Aimorés. Sugere-se maior importância à construção portuguesa, realçada pela bandeira exposta no alto das muralhas, que lembram um castelo medieval, com suas colunas, corredores e portões pesados, ao ponto de o filme mostrar reverência por parte dos aimorés, ao ímago-mundi português, no momento da invasão.
É a descrição do rio Paquequer e do rio Paraíba que iniciam a obra literária, ao passo que no filme a grandiosidade do rio surge apenas no final, simbolizando o grande dilúvio mítico cristão apresentado na obra como um ritual de nascimento da nova nação. Na obra, mais do que uma um recurso natural, tais rios são antropomorfizados: o próprio Paquequer é a representação de uma hierarquia medieval, quando de sua atribuição de “vassalo” do Paraíba, seu suserano. Este cenário nada mais é que a descrição simbólica da relação colonizadora X colonizado, porém esta relação natureza/ índio X português exprime a inferioridade do colonizador diante da robustez e valentia, da harmônica integração. A inferiorização do estrangeiro concorre para a absorção do elemento constituinte da nova geração, num simbólico ritual quase antropofágico: marcado pela escolha da mulher frágil, dócil, européia e perfeita, e do homem forte, corajoso, dominador das forças da natureza, selvagem e perfeito.
Em Alencar, Ceci é a representação da fragilidade, candura e inocência da mulher, o que compactua em certos momentos com o retratado no filme. Isabel, por outro lado, é a figuração da exuberância, da sensualidade e da "malícia" na visão alencariana. Tais figuras tecem um pano de fundo maniqueísta, estabelecidos por um contraste que também aparece em Álvaro e Loredano.
No filme esse maniqueísmo entre Cecília e Isabel é negativamente mais acentuado para Isabel, desde o inicio, que desempenha um papel de dama de companhia de Cecília, refletindo outra relação: a hierárquica. Na literatura essa relação é atenuada pela relação de proximidade desenvolvida ao longo da história, na qual Isabel primeiramente é prima, depois amiga, e, finalmente, irmã.
Seguindo as relações dualísticas, Alencar atribui características cavalheirescas à Peri, separando-o de sua tribo, e impondo-lhe a responsabilidade de proteger o seu novo senhor, D. Mariz, numa relação de fidelidade de um e dependência do outro. Este é um aspecto comum nas duas composições, a obra e o filme. O bom selvagem honra a seu senhor trocando cortesias e devotando-lhe dedicação. No filme, porém, Peri tem sua altivez atenuada para total e completa resignação à Cecília, diferenciando-o da personagem de Alencar, que, embora adorando Cecília, preza sua liberdade e sua religião, abjurando sutilmente os valores cristãos e expondo suas crenças à amada. Mesmo depois de batizado, ato maior de negação do valor religioso original, assume seu posicionamento diante de Ceci, que se vê seduzida pela “inocente superstição”. A força hercúlea de Peri na reformulação do mito grego também é ignorada na produção do filme.
O amor á Cecília por parte de D. Álvaro e a de devoção de Peri à menina, estabelece entre os cavalheiros, uma relação de cumplicidade, na empreitada em defesa da frágil donzela, resgate característico dos romances de cavalaria.
O bom e o mal estão bem marcados no embate entre Peri e Loredano, aspecto comum tanto na obra quanto na película. Loredano assume o papel de ex-cristão, criminoso, relapso das afabilidades dignas dos fidalgos, homem sem escrúpulos, enquanto Peri é o selvagem aculturado, o “D. Cacique”, título dado por Loredano, por sua virtude, lealdade e disposição a doar sua vida em proteção à sua amada. Já Loredano, que se contrapõe a Peri, nutre por ela um desejo de posse, que se não obtido seria capaz de matá-la.
Também entre D. Mariz e Loredano a dualidade é manifesta pela oposição hierárquica, conquistada pelo respeito e autoridade demonstrada pelo fidalgo português, e comprada com a possibilidade de riqueza por Loredano, no conflito o bem vence o mal.
A primazia dos elementos religiosos, presentes nas duas composições tem seu valor acrescido na produção cinematográfica em dois momentos: nos adereços das grandes cruzes usadas pelos personagens que ao mesmo tempo lembra as cruzadas e a bandeira de Portugal e pela evocação à inquisição no momento em que Loredano é castigado, amarrado a um poste e queimado na “santa fogueira”, sob olhares, que observam o mal sendo desraigado do meio puramente cristão, sinalizando o ritual de passagem para um novo recomeço, sem os pecadores. Colocando nesse ritual, talvez a principal contradição entre as composições, já que, na literária, Alencar representou essa mudança pelo ato diluviano.

(por Regina Chaves e Suellen Borges)
Cascavel/2006

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