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quarta-feira, novembro 04, 2009

Amar, Verbo Intransitivo

O Processo de Aculturação: Segundo a perspectiva Modernista de Mário de Andrade

Regina CHAVES (UNIOESTE) [1]

RESUMO: Nossa proposta é explorar na obra Amar Verbo Intransitivo, o estilo e toda a riqueza do contraste Modernista, enquanto a psicanálise de Sigmund Freud (1974) expõe o mal-estar na civilização como um mal necessário para a subsistência da civilidade e Simone Beauvoir (1980) explica a função da mulher como mantenedora da sociedade patriarcalista na universalidade social. Finalmente, discutiremos a contradição entre a atitude paternalista, que, embora sujeito ao moralismo vigente, se apresenta emancipadora e contraditória. Fato que nos possibilita reexaminar outra noção de amor, no qual o desejo transcende do individual para a contextualização social, segundo os aspectos químicos do neovitalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Patriarcalismo; Literatura Brasileira; Neovitalista; Modernismo;

Introdução

Um questionamento se fez presente para que este trabalho tivesse inicio: O que Mário de Andrade quis dizer em carta ao redator, quando salientou sua insatisfação quanto às análises feitas pelos críticos da obra Amar, verbo Intransitivo, quando negligenciaram a ótica neovitalista? Prontificamo-nos a prescurtar o olhar inovador de Mário de Andrade ao mostrar o humano nas suas máscaras sociais, enquanto, num jogo estratégico, alterna cenas, episódios e ironias, descrevendo o conflito do Movimento Modernista na sua questão fundamental: Cultura Brasileira na íntegra ou Cultura brasileuropainizada? Vejamos o trecho da carta que chamou nossa atenção:

O livro está gordo de freudismo, não tem dúvida. E é uma lástima os críticos terem acentuado isso, quando era uma cousa já estigmatizada por mim dentro do próprio livro. Agora o interessante seria estudar a maneira com que transformei em lirismo dramático a máquina fria de um racionalismo científico.
(ANDRADE, 1944, p.153)

A partir desse questionamento buscamos identificar o que Mário de Andrade (1944) chama “doutrinas de neovitalismo”[4] sem, contudo, abandonar a linha psicanalítica de Sigmund Freud (1974) e Simone Beauvoir (1980) que se tornaram alicerces, nos quais o autor se fundamentou para explicar, de modo complexo, a sociedade naquele momento. FREUD (1974), por exemplo, explica a sexualidade como força motriz que comanda a civilização humana em todas as áreas sociais. Embora o medo seja propulsor dos atos humanos é na sexualidade que encontramos a química necessária para subsistência. Simone Beauvoir (1980) nos faz refletir o porquê da distinção homem/mulher cujas funções estão socialmente designadas, quer sejam acordadas e/ou impostas. E o que motiva a durabilidade deste estranho processo dualístico de ser homem ou mulher na relação que pode não estar associado à relação de poder.

1 - Amar, Verbo Intransitivo

Amar, verbo Intransitivo nos mostra numa das várias facetas, que o patriarcalismo está vincado na instituição casamento, no qual a moral está cingida como instrumento de segurança do todo, seja qual for o critério, será sempre o melhor possível diante dos fatos que teimam em tornar-se verdade. Na voz de Mário de Andrade, publicada no ano de 1927 e classificado pelo autor como idílio[5], a ironia dá ao autor as mestras necessárias para compor sua obra Modernista.
Olha por sobre o romance, como se olhasse pelas frestas de uma sociedade que se desenha buscando educação, arte e empregados importados dos recônditos europeus. São os novos ricos brasileiros, que enfeitam suas bibliotecas com volumes de livros, mas se enfadam apenas em pensar lê-los, preferindo mesmo os “folhetins que são breves”. Enquanto isso, o oposto acontece. Os estrangeiros chegam de mansinho e com bagagem cultural e repulsa pelo estilo brasileiro de ser, se instalam e ao final são mais brasileiros do que pensam.
A narrativa, predominantemente em terceira pessoa, apresenta-nos um narrador onisciente, que sabe tudo, de todos, sonda o âmago de cada personagem, e parece entender mais de Fräulein Elza, pois é através dos olhos de Elza que descreve os detalhes da casa, da família, da cultura brasileira e da cultura alemã. Narrador que, vez por outra, se torna intruso, colocando-se em primeira pessoa, fazendo comentários, críticas, expondo uma idéia, pedindo aceite do leitor.
O tema central da obra é o aprendizado sexual de um adolescente, enquanto aborda a adaptação dos imigrantes à agitada Paulicéia. Os personagens têm personalidades lineares. Fräulein Elza – Alemã de trinta e cinco anos, professora de piano e de língua alemã, governanta. Carlos Alberto – divide o papel de protagonista com Elza, adolescente, quinze anos filho de D. Laura e Felisberto Sousa Costa – patriarca da família. As três filhas do casal: Maria Luíza – doze anos, Laurita – sete anos e Aldinha – cinco anos. Luís – jovem burguês, atendido pelos trabalhos de Elza, é personagem figurativo, assim como Tanaka – criado da casa.
Quanto à estrutura, neste romance, as passagens são narradas como se fosse uma série de flash back[6], não apresentando uma seqüência narrativa comum, abrindo entre os fatos algum distanciamento. A palavra FIM aparece, mas o autor pede ao leitor para acompanhar um pouco mais a história, e nesse um pouco mais, oito páginas são necessárias para o desfecho.
Espaço geográfico: São Paulo/Rio de Janeiro que se constitui parte da nação adquirindo dimensão simbólica entre os contrastes Alemanha/Brasil
Ambiente, Vila Laura na Avenida Higienópolis, a casa da família, e a viagem ao Rio de Janeiro para convalescença da filha dos Souza Costa, onde passeiam pela praia e Tijuca.
Tempo: inicia-se no dia da contratação de Fräulein “fins de inverno” e primeiro ou segundo dia de setembro quando ela chega à casa dos Souza Costa. Fevereiro festa de carnaval na avenida, último encontro. As crianças têm um ano a mais ao final da narrativa.
Conflito: a narrativa expõe conflitos psicológicos: de Fräulein Elza entre razão e desejo. De Carlos que se apaixona por uma ‘aventureira’ que buscava casamento e dinheiro. Do casal Souza Costa ao ver se aproximar a adolescência do filho. E conflitos externos: quando Dona Laura resolve pedir a Elza que vá embora e a farsa para surpreender o rapaz no quarto da governanta, eis o clímax da narrativa.
Fräulein Elza tem, entre as funções de professora de língua alemã e de música, o propósito específico de iniciar no amor, o jovem Carlos. Souza Costa raciocinava segundo sua posição de patriarca burguês e tinha por objetivo proteger o filho de aventureiras usuárias de éter e morfina que recheavam a cidade paulistana, e eram a principal fonte de diversão dos adolescentes.
Este é o relato comum, de uma história de amor planejada, cujo desfecho ocorreu previsivelmente pelo estranho contrato entre uma mulher ‘da vida’ e um chefe de família. Parece normal. Mas o que nos chamou a atenção, efetivamente, não foi o caso de amor entre Elza e Carlos, e sim a contraditória atitude do patriarca em colocar na sua casa uma mulher para seu filho, que seria também a professora de suas filhas. Longe de enxertar falso moralismo, e sim percebermos nesta fresta, o segredo ou a essência do romance. A contradição ocorre justamente ao contextualizarmos a obra ao seu tempo (1927), somado ao contraste lingüístico, no qual o autor expõe um falar suburbano contrapondo aos ideais da cultura clássica européia, como Rembrant, Schiller, Goethe, Nietzsche, Freud, Bach, desenhando, ao nosso entender, o relacionamento mais conturbado do romance.
A narrativa, mesclada entre clássicos europeus e brasileirismos, denota que o autor imprimiu em sua obra, o padrão coloquial brasileiro contrabalançando valores culturais europeus. A ousadia na linguagem evidencia a luta Modernista por uma língua próxima do falar popular, exemplo: A duplicação da negativa: “Fräulein não é bonita não” (ANDRADE, 1944, p. 58); Os neologismos, com a junção das palavras: cacete+chateação “caceteação” (idem, p. 97); e “caceteando” (idem, p. 144); “malacabada” (idem, p. 55). Verbos conjugados em tempos diferentes formando uma só palavra: fogefugia, brincabrincando (idem, p. 56); “chorachorando” (idem, p.139).
Retomaremos no final do trabalho, a provável intenção do autor ao usar esses neologismos, segundo a tese a que nos dispusemos advogar.

2- O mal-estar na civilização, segundo FREUD (1974)

A psicanálise de FREUD (1974), ao explicar o homem e a civilização, teoriza sobre o apego aos deuses ter advindo do terror sobre as coisas que não entendia, e mesmo quando o conhecimento lhe trouxe algumas respostas, ainda assim, necessitava de proteção para que o medo ou a angústia não o dominassem. É necessário viver, assim como para viver, é necessário se proteger. O patriarcalismo nasce dessa perspectiva. O pai e a mãe devem proteger seus filhos, ensiná-los seguindo os padrões culturais e morais que lhes foram ensinados e assim sucessivamente. Esta proteção poderia incorrer em repressões, gerando neuroses psíquicas, que o homem carregaria pela vida adentro.
“A criança humana não pode completar com sucesso seu desenvolvimento para um estágio civilizado sem passar por uma fase de neurose, às vezes mais distintas, outras, menos [...] mas têm que ser domadas através de atos de repressão.” (FREUD, 1974, p. 56).

O mal-estar na civilização advém dessa proteção, a repressão como elemento de persuasão se transforma num mal necessário, e as neuroses apresentam-se, quando esta repressão atinge graus intoleráveis. Por isso repreensão deve ser ministrada criteriosamente para que a auto-estima não seja prejudicada:

A auto-estima do homem seriamente ameaçada exige consolação; a vida e o universo devem ser despidos de seus terrores; ademais, sua curiosidade, movida, é verdade, pelo mais forte interesse prático, pede uma resposta.
(FREUD, 1974, p. 27/28)

A resposta nem sempre é satisfatória, porém, os humanos precisaram continuar subsistindo apesar dos questionamentos. É na ancestralidade e na posteridade familiar que nutrem o humano da vontade de continuar, e muitas vezes, é o que o faz buscar equivalente proteção para além dos laços familiares, até alcançar o divino.

O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do destino, e particularmente a que é demonstrada na morte, recompensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhe impôs. (FREUD, 1974, p. 29)

A tarefa é comunitária, o bem comum exige regras para promover a harmonia ou restabelecê-la. “A civilização poupa a tarefa de defesa do homem em frente aos poderes adversativos que ameaçam sua vida.” (FREUD, 1974, p. 27). A experiência é o pilar de uma sociedade protetora, pois o homem não consegue visualizar o perigo na tenra idade. Quem senão a família para amparar esse primeiro cambalear?

Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (FREUD, 1974, p. 30)

Quando pensamos a obra andradiana, percebemos a necessidade do patriarca Souza Costa em manter a unidade familiar e salvaguardar os membros do clã de possíveis fortuitos que colocassem em risco a estrutura do que representava a ‘civilização’ dos emergentes burgueses. Um objetivo que se estabeleceu de maneira contraditória, até grotesca para os idos de 1927, tempo em que a moralidade religiosa cerceava o nicho familiar como extensão da obra divina.
Fácil apostar que o Sr. Souza Costa teria o cuidado de arrumar uma amante para o filho, mas difícil concordar com a possibilidade dele a colocar na sua casa, onde outras três filhas seriam educadas pela mesma ‘amante do filho’.
Mário construiu através do viés freudiano, uma família protetora para Carlos e lhe deu seu primeiro amor, e sem mais, nem menos, diz ao seu leitor que Carlos havia se adiantado, e conhecido outras mulheres, justamente da forma que seu pai temia que o fizesse, então, para o leitor atento, o propósito fora nulo? Note, porém, que a relação e o desfecho da história privaram Carlos da inocência com respeito ás mulheres, afinal ele tinha mais conhecimento do que o pai ou a própria Elza podiam prever. Ele tinha autonomia sobre seus desejos e sobre suas ações. Ele amara uma aventureira. É assim que o narrador a descreve: De elevada intelectualidade, mas diminuta como mulher nos moldes patriarcais da época, uma prostituta como outra qualquer: “Com cem bagarotes então, a gente caminha mais um pouco e a encontra, no largo do Arouche, novinhas, bonitas, ítalo-brasileiras, [...] por cinqüenta [...] por dez mil-réis...” (ANDRADE, 1944, p. 143).
A dualidade entre razão e emoção de Elza é a ferramenta para acrescentar e estabelecer o objetivo do autor para a narrativa. Este é o ponto que a diferencia das demais, pois embora estivesse em conflito com seu “homem-do-sonho”, era movida pelo “homem-da-vida”, enquanto Carlos com seu ar juvenil “tinha uma graça e doçura mesmo femínea” (idem, p. 68), também se utiliza da razão e da emoção para buscar as experiências que Elza lhe acena. Dualidades que simbolizam satisfatoriamente o processo neovitalista, que explicaremos mais adiante.
A bandeira modernista estava içada, e a liberdade de criar garantida. Mário de Andrade usou de liberdade. A dose de sofrimento administrada a Carlos estava dentro dos padrões freudianos da normalidade, tudo regado o posterior amparo, carinho e certa dose de doçura da ‘coletividade’ Souza Costa. A família burguesa paulistana era apenas um elaborado disfarce para o autor explicar o momento literário, cultural e social, que ele, Mário, estava visualizando, estudando e contrapondo, sob o manto romanesco.

3- A mulher na concepção universal

A sabedoria psicanalítica freudiana, embora traga lume à narrativa, sob nosso ponto de vista, não consegue explicar todas as peripécias dos Souza Costa e de Fräulein Elza, quando sob a batuta de Mário de Andrade, pois que foge ao seu tempo e nos alcança. É o enfoque de Simone de Beauvoir (1980) que esmiúça a função feminina nessa concepção universal de sociedade. Ao incorporarmos sua visão sobre ser homem/mulher na universalidade, não abandonamos as teorias de Freud, ao contrário, endossamos, já que BEAUVOIR (1980) utiliza-se delas para estudar o viés feminino na questão. Segundo a autora, o patriarcalismo existe por acordo pré-estabelecido para subsistência da civilização. Para o que Freud chama de proteção, BEAUVOIR (1980) chama de condição estabelecida em comum acordo:

Portanto, não é geralmente por amor que se resolvem os casamentos. Está implicada na própria natureza da instituição. Trata-se de transcender para o interesse coletivo a união econômica e sexual do homem e da mulher. (Beauvoir, 1980, II, p. 175)

A condição de fragilidade supriu a mulher de outra saída para realizar-se, enquanto o homem ocupava seu trono de superior mediante acordo ou determinação da própria mulher que escolheu vencedores para dar aos seus filhos o melhor da genética:

Desde a infância, tenha querido realizar-se como mulher ou superar as limitações de sua feminilidade, a menina esperou do homem realização e evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de São Jorge, é o libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da felicidade: é o príncipe encantado. (BEAUVOIR, 1980, p. 66)

O homem por sua vez, ocupou seu lugar de destaque, superior em força, encontrou o auditório perfeito para criar o seu espaço de dominação, tendo de antemão, êxito garantido.

O marido compraz-se geralmente nesse papel de mentor chefe. Ao fim de um dia em que conhece dificuldades em suas relações com iguais, em que tem de submeter-se a superiores, ele gosta de se sentir um superior absoluto e oferecer verdades incontestadas. (idem, p. 222)

Usando as teorias sobre sexualidade, como o Complexo de Electra e o Complexo de Édipo, expressadas por Freud, BEAUVOIR (1980) coloca sobre os ombros do feminino a responsabilidade pela escolha vantajosa na posição de ser o “Outro” na dualística homem/mulher. Fräulein era a mulher universal no seu ‘homem-do-sonho’ e buscava no casamento, o descanso da luta que travava com o seu eu exterior. Ela desejava uma família. Escolhera seu homem, sua cidade e a sua casa. Programara seus dias e noites. Esperava o momento propício para usufruir desta felicidade. O momento em que pudesse voltar para a Alemanha.

O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua dignidade social integral e realizar-se como amante e mãe. (idem, p. 67)

Para BEAUVOIR (1980), a mulher-mãe usa seu poder para firmar a masculinidade que admira no homem quando educa seu filho, enquanto o pai o instiga ás adversidades. “O menino apreende a superioridade paterna através da rivalidade: ao passo que a menina a sofre com uma admiração impotente, o complexo de Electra.” (idem, p. 29). O homem-pai exerce poder para amparar e mimar as filhas no aconchego do lar, enquanto a mãe é a adversária que lhes rouba o objeto de desejo. A menina vê no pai a força e a proteção que deseja para si, e ao se tornar mãe dá continuidade ao ciclo educando seus filhos a serem corajosos e heróis.
Nesses moldes podemos perfeitamente encaixar os Souza Costa: três filhas mimadas e dengosas “Maria se pensa mocinha e quer ser tratada com distinção” (ANDRADE, 1944, p. 70); Carlos, um menino forte, machucador “Virilidade guapa” (idem, p. 68); um pai protetor que usa de subterfúgios para garantir um espécime à sua altura. No entanto Dona Laura é omissa neste seu papel de cooperadora. FREUD (1974) diz:

Sem dúvida, o meio mais simples para a criança seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas, que desde a sua infância, tem amado [...] a barreira contra o incesto, faz a sociedade defender-se afrouxando os laços [...] para que o jovem possa apegar-se ás mulheres com laços afetivos equivalentes à ternura infantil, mas sem autocensura. (FREUD, 1974, p. 233/234)

Então surge Elza, um “membro que faltava” ou “Mecanismo novo na casa. Mal imaginam que será o ponteiro do relógio familiar” (idem, p. 54). Ela se torna mãe daquelas crianças e embora abomine o incesto, ensina Carlos a se tornar o homem universal que constituirá para a sociedade emergente, um lar sagrado. Carlos é o filho que chora pela mãe: “Coitado! Decerto perdeu a mãe.” (idem, p. 139). Endossando o conceito Freudiano, temos o romance e a análise concluída e sublinhada por BEAUVOIR (1980). Para o nosso entender, ainda não é o bastante, por isso continuaremos, buscando responder o questionamento levantado no inicio deste trabalho.
Na composição estética de Mário de Andrade (1944), o romance apresenta no idílio, uma tela ou quem sabe os sons para se orquestrar uma questão maior. Questão que fora anunciada em carta ao redator. O autor queria que sua obra fosse analisada pelas “doutrinas de neovitalismo.” (ANDRADE, 1944, p. 153). O autor rompia com a forma e ensejava novo estilo, assim como injetava vida e um olhar perscrutador sobre a sociedade paulistana, e sobre o pensar cultural da sociedade brasileira daquela época. Era um tempo de repensar o Brasil. Era um tempo de voltar o olhar para o que havia de precioso em sua terra. O narrador viu sob o olhar alemão de Elza, um Brasil que Carlos não via, ou não se importava que existisse. O autor elaborou cada passo, cada personagem para invocar a estética da família burguesa paulistana e as suas máscaras hipotéticas de sociedade pseudo-européia. Criou, num ambiente familiar abastado, a possibilidade de um amor terno e principalmente de um amor transformador. Contrastou as dualidades, e pesou pós e contras que transcenderam a base simplista do que significaria: lar, família, amor físico e amor espiritual. Elevou-os para o social e universal. Percebeu que para explicar as relações humanas precisaria da filosofia, da psicanálise, da física e da química para explicar o processo do homem como ser vivo e participativo da vida, quer dizer, ele não é um animal que sofre algum tipo de evolução ou mutação sem poder decidir por ela. O homem decide e deseja essas mudanças, mesmo que a princípio se apresente involuntária, por isso o neovitalismo.

4- A química Neovitalista

A química que emana das relações humanas atuam como mola propulsora. O que a física chama de ação e reação. A troca de informações ocorre involuntariamente ao mesmo tempo em que as emoções são acionadas e estruturalmente processadas pelo neurosistema. Primeiramente reagindo dualisticamente entre razão e matéria (necessidade racional), mais tarde, a reação entre necessidade e desejo (razão/emoção). É no conceito de força de continuar a viver que nasce o neovitalismo, mas viver da melhor forma, ou seja, de preferência buscando o prazer, como diz a teoria freudiana. O autor de Amar, verbo Intransitivo, percebe o processo a transformação das diferenças, e dá pistas quando diz: “Há todo um estudo comparativo a fazer entre a naftalina Max Reger e os brometos em geral” (idem, p. 73). Ora, Max Reger não era químico e sim maestro. Então ele usa a comparação química e a música para testamentar valores culturais nacionais e estrangeiros, observando-os á distância, crítico que era.
O amor de um adolescente e de uma mulher adulta não tem necessidade de transcender o quarto dos amantes, a menos que seja para deleite ou curiosidade de alguns leitores. No entanto, o autor invoca os brasileiros como se invoca a uma nação, anunciando, por exemplo: “Sossegue, brasileiro, por enquanto eles não conspiram nada” (idem, p. 67) ou “Não vale a pena lutar brasileiro” (idem, p. 137). Em que, o amor dos dois, poderia tumultuar o sossego de uma nação ou colocá-la de sobreaviso? Ao nosso entendimento, esta é a fresta para expor o conceito de neovitalismo, que se origina do vitalismo, vamos a ele:

O vitalismo sofreu um grande abalo em 1828, quando pela primeira vez foi sintetizada em laboratório uma substancia orgânica (a uréia). Isto reforçou o ponto de vista daqueles que propunham ser o fenômeno da vida inteiramente explicável pelas propriedades físico-químicos da matéria que constituía os seres vivos. Surgiu então o chamado neovitalismo, que, embora admitindo a influência dos fatores físicos e químicos nos processos vitais, considerava estes últimos como não redutíveis inteiramente às leis da matéria que os constituía. Atualmente o termo vitalismo tem sido comumente empregado para designar concepções que são na verdade neovitalistas. Reich, que foi quem desenvolveu e sistematizou melhor o conceito de bioenergia a partir da concepção freudiana de libido, declarou a influencia recebida de vitalistas como Driesch e Bergson (REGO, 2009)

O neovitalismo explica a bioenergia que emana de todo ser vivo como sendo responsável pela re-organização do homem no seu ambiente. Um ser complexo que não se limita simplesmente á evolução Darwinista e muito menos ao estático determinismo, mas que se organiza fisicamente, biologicamente e emocionalmente através das relações sociais que desenvolve, isto é, se desenvolve através a razão e da emoção. São duas essências na mesma matéria, “O vitalismo propriamente dito, é integralmente dualista.” (REGO, 2009)[7], duas energias, sendo uma responsável pelo ciclo da vida, e outra, pela química que emana através das emoções, mantendo os corpos vivos e em constante movimento.
Mário de Andrade (1944), muito além do seu tempo, explica que essa energia atinge proporções ainda maiores, tanto, que vale apontar rapidamente a cultura fronteiriça, amplamente debatido nas teses pró-étnicas, por exemplo. A diferença desses teóricos e de Mário de Andrade, é que Mário percebeu o processo como algo positivo, enquanto os antropólogos e filósofos usam-no de base negativa para explicar a exploração das raças. Darcy Ribeiro (1995), assim como Mário de Andrade, fez uma análise positiva do processo de aculturação, o que os diferencia, é a distancia temporal. Ele diz:

Foi desindianizando o indígena, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que fizemos a nós mesmos. Somos, em conseqüência um povo síntese, mestiço, na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque, para nós, a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado (RIBEIRO, 1995, p. 13).

Os conceitos que se utilizam da biologia, da química e da física não foram aceitos pelos críticos na época em que foi editado Amar, verbo intransitivo. Porém, explicaria satisfatoriamente o processo dualístico do homem-do-sonho e o homem-da-vida no conflito de Fräulein; assim como o verbo ser e o verbo amar sendo símbolos dessa dualidade. O corpo humano ganhou status de nação e explica o sonho patriótico Alemão e o fato de Elza não estar na Alemanha. Explica o fato de brasileiros estarem no Brasil, mas esteticamente se pensarem europeus. O principio da matéria e o principio vital estão no mesmo corpo material, enquanto o espírito tem liberdade e a vida movimento. A química no neovitalismo é responsável pela dinâmica da procriação e da manutenção cíclica da vida. A química em Amar verbo intransitivo pode ser equiparada à química neovitalista do amor, primeiramente nos corpos sofrendo a influência do amor carnal, depois transcendendo para o espaço geográfico, social e cultural. “Três quartos de hora depois a bandeira partia rumo a Tijuca.” (ANDRADE, 1944, p. 118)
Não era a família Souza Costa que partia, mas a bandeira brasileira rumo à Tijuca, assim como Elza não era apenas uma mulher, mas um representante alemão vivendo fora de suas fronteiras e dentro do Brasil. O narrador fecha a porta do quarto, na primeira noite dos amantes, desviando o foco dos leitores que o acompanham atentos, e depois se enche de entusiasmo ao narrar o orgasmo de Elza diante da beleza e da exuberância do Brasil na Tijuca. “Ela fremia. Ela vibrava e se entregava inteira aos enlaces faunescos do cheiro e da cor.” (idem, p. 119). Neste trecho do romance, o termo idílio toma a significação pastoril da Bucólica de Virgilio, o amor de Elza não é por Carlos, mas pela fauna brasileira.
Enquanto a química atuava em Elza, atuava também nos Souza Costa. Carlos não sentia ciúmes de Elza, “Desprezava os sentimentos sutis.” (idem). Assim como Elza desprezara-os no inicio: “O samba lhe dava uns arrepios na espinha e uma alegria...musical? Desprezível” (idem, p. 66). A transformação em Carlos é visível, pois a comédia nacional causa aversão em Carlos, que passa a valorizar o gosto clássico da Alemanha de Elza. Maria Luiza sonha com o Jardim Zoológico em Hamburgo e não entendia o que poderia haver de tão extraordinário na Tijuca. Era a simbiose cultural, emocional e física.
A química cumprira seu papel e assimilavam-se, assim como seriam assimilados o tigre japonês e o tigre alemão, afinal, “A aritmética nunca foi propícia aos brasileiros. Nós não somamos coisa nenhuma.” (idem, p. 71). Por que a soma implicaria em 1+1=2, enquanto que, no aculturamento 1+1=1≠. E o campo era fértil, estava muito bem preparado para a nova cultura, eis os elementos necessários:
Aqui o copeiro é sebastianista quando não é sectário de Mussolini. Porém os italianos preferem guiar automóveis, fazer a barba da gente, ou vender jornais. Se é que não partiram pro interior em busca de fazenda para colonizar [...] Porém se o copeiro não é fascista, a arrumadeira é belga. Muitas vezes. Suíça. O encerador é polaco. Outros dias é russo, príncipe russo. [...] Só as cozinheiras continuam ainda mulatas ou cafuzas, gordas e pachorrentas negras da minha mocidade!...Brasil, ai, Brasil! (ANDRADE, 1944, p. 97/98)

A ironia do autor é latente enquanto descreve o tigre japonês e o tigre alemão em estranho confronto na solitária Vila Laura. Os relacionamentos estavam aqui no Brasil, não havia necessidade nenhuma de ir até a Europa para se deixar influenciar pela cultura européia, assim como não precisaria ser brasileiro para entender o momento intelectual do brasileiro, mesmo assim o testamento é claro:
Apalermados pela miséria, batidos pelo mesmo anseio de salvação, sofrenados pelo fogaréu do egoísmo e da inveja, na mesma rocha vão trêmulos se unir. A queimada esbraveja. Os dois tigres ofegam [...] Sufocam, meu Deus! Que deus? Odin de drama lírico, sáxeo Buda no contraforte das cavernas? Mas, porém sobre a queimada Tupã retumba [...] Por enquanto. Creio mesmo que vencerá. Os dois tigres acabarão por desaparecer assimilados. (idem, p. 99)

Relembra o poema de Castro Alves, A Queimada, cuja definição literal do termo, tem por função a derrubada da mata nativa pelo fogo, para plantio de novas culturas. Segundo Mário, A Queimada está além do funcional comum, assim como o calor abrasador e envolvente da relação sexual, simboliza uma relação, que está além da carne, invadindo o espiritual. “Amor deve nascer de correspondências, de excelências interiores, espirituais.” (ANDRADE, 1944, p. 63).
Deste modo se explicam a deliciosa oralidade musicada dos verbos “queimaqueimando” “fogefugia”, “brincabrincando” e “chorachorando” (idem, p. 56 e 139) em que se estabelece o mesmo processo químico, dualístico e quase sexual na linguagem, na vontade e nas idéias, que ora se apegava com a “cerimônia Tupi”, ora se voltava para o Expressionismo europeu, temperando com o que o modernismo ofereceu de mais marcante: A contradição.

Conclusão

As possibilidades de análises transformaram o amor terno e elevado de Elza e Carlos, num amor terno e patriótico para os estrangeiros que aqui desembarcaram, primeiramente, cheios de desprezo, trazendo uma cultura erudita que o brasileiro logo se afeiçoou e assimilou, e finalmente eles, ao longo de sua permanência, pegam gosto pelo jovem e desajeitado moreno e rijo, que de molenga e desajeitado, passa a ser mais forte e sedutor. Por que mais desajeitada que as canções infantis brasileiras em contraposição à suavidade das cantigas alemãs expostas em Amar Verbo Intransitivo? Mas a simbiose permite colocar lado a lado as diferenças, primeiro para percebê-las grotescas, depois para declará-las ingênuas para então assimilar-se e tornar-se forte e rija.
Diante desta contextualização, fica claro a habilidade do narrador ao compor, o que podemos chamar de Amor pelo Brasil (grifo nosso). Para Mário de Andrade havia a necessidade de simbolizar no emocional humano, este processo de aculturação que ocorre no universal. A idéia de nação é uma forma sintetizada do que chamamos civilização, e ambas nascem a partir do dinamismo da procriação e da proteção entre os seus. O mal-estar na civilização advinha de um processo doloroso, no qual, a aplicação de uma educação poderia acarretar neuroses como um mal necessário. O mal-estar na civilização brasileira advinha de certo sofrimento para os intelectuais que ansiavam pelo conhecimento ultramarino, enquanto se implantava um movimento puramente nacional. Os modernistas foram criticados por ainda manterem seus olhos na cultura européia, porém, com o pensamento além do seu tempo, Mário percebe a simbiose como mal inevitável, necessário e prazeroso, cercado de certo sofrimento pela repressão ministrada entre os seus, mas involuntariamente prazeroso. Seu olhar conseguiu perceber os dois lados na química cultural, pois Elza deixou Carlos e seus sonhos de casamento foram sofrendo pequenas alterações no decorrer da narrativa, perderam sua força inicial, foi se abrasileirando. Carlos foi abandonado por Elza e logo estava envolvido novamente, não com uma negra cafuza, gorda e pachorrenta que despertaram suspiros de saudades no narrador, não, mas por uma holandesa. Forma simbólica que o narrador encontrou de dizer-nos que a simbiose continuaria, pois estava regado de um sentimento terno, nada muito forte ao ponto de interromper o movimento crescente, e também nada tão superficial, que não causasse alguma transformação.
A família de Amar, verbo Intransitivo é como a célula de um corpo maior, se comporta tal qual o corpo, o Brasil é a “Mãe gentil”, aquela que exige que seu filho cresça e seja tão forte quanto ela desejou que fosse, e o brasileiro é o filho que tem pressa e muito que aprender, pois ainda é só um menino, embora esteja se tornando quase homem, tanto nas experiências amorosas recheadas de estrangeirismos, quanto nas reivindicações do Movimento Modernista Brasileiro.

Referências

ANDRADE, Mario de. Amar, Verbo Intransitivo. Idílio. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1944.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: Fatos e Mitos. Vol I, 8ª ed. tradução Sérgio Milliet: Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980.

__________________A Experiência Vivida.Vol II. 4ª ed; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
FREUD, Sigmund. O futuro é uma ilusão. O mal-estar na civilização.
(1929/30). [Trad. de Jayme Salomão]. Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1974.
MENDES, Erasmo G. Fisiologias: Crises? Estudos avançados. Publicado em 20/08/1994 e acessado em 29/09/2009
http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a13.pdf
REGO, Ricardo Amaral. Conceitos de Bioenergia. Acessado em 03/09/2009
http://www.ibpb.com.br/Conceitos_bioenergia.doc
RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
PAULI, Evaldo. Filosofia do ser vivo. Capítulo II (§546) Estudo publicado na Revista Científica Simpózio, 1997. Acessada em 25/05/2009
http://www.simpozio.ufsc.br/Port/1-enc/y-micro/SaberFil/FilosNatur/2211y519.html

[1] Acadêmica graduanda do curso de Letras/Inglês 3ª ano pela Universidade do Oeste do Paraná, e-mail chaves.re@gmail.com
[4] O neovitatalismo é bioenergia explicada a partir da concepção freudiana da libido.
[5] Palavra usada como título do poema do poeta grego Teócrito. Idílio do grego eidúllion = “pequena fotografia”, mas que assume no romance de ANDRADE, a significação de um amor por sedução, leve e poético. O termo apresenta também a inspiração pastoril, usada pelo poeta Virgílio em suas Bucólicas.
[6] Flash-back ou analepse: figura de linguagem utilizada pelo narrador para estabelecer ação temporal interna e externa da narrativa.

[7] Conceito extraído da revista eletrônica virtual Simpósio.

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