O ritual diário e cansativo se estende por toda semana, com exceção de hoje. Acordei, quando meu marido fazia ruídos inexprimíveis, mas que eu já aprendera a decifrar, nenhum dia era sempre o mesmo ruído que me acordava, porém eles me avisam que estava na hora de preparar o chá. Não gostava muito de tomar chá naquele horário, mas tudo bem, mais tarde beberei o meu delicioso café como alguém que se resguarda ao prazer mais doce no recôndito secreto da intimidade. Levei-o ao trabalho e voltei, olhei meu jardim e as plantas sorriam com um daqueles sorrisos que vemos nos rostos das crianças depois de comer o mais delicioso quitute. Eu sou cúmplice. Era um dia chuvoso depois de uma interminável estação poeirenta. Daquelas que as vias aéreas ficam te alertando o tempo todo: ― Olha estou com problemas― E estavam.
Fui ao meu pé de guaco e separei tenras e verdes folhas para um remédio infalível, nada de antibiótico ou venenos que nunca mais saem do teu organismo. Embora o Varela tenha dito em alto e bom som, que os remédios da farmácia e a consulta médica sejam a melhor escolha, tenho certeza que só disse isso por causa dos grandes laboratórios e por que não conhece meu xarope de guaco, mel e limão. Separei as alegres folhas e levei-as a cozinha, estavam magníficas, com seu verde brilhante por causa da chuva. Lá fora a algazarra dos pássaros era como uma orquestra regida pelo grande Maestro ― A felicidade brotava nas manhãs depois da chuva.
Olhei minha calçada ― não sorria― meus cachorros cuidaram para que isso não acontecesse. Peguei um balde e uma escova e tratei de harmonizar o ambiente. Foi quando sons, de alguém falando em tom brusco, chegaram ao meu ouvido e por um momento só antenei, depois, como os sons persistissem fui até a grade. Havia dois garotos discutindo.
O de estatura mais baixa e cabelo preto aparentava, talvez 17 anos, mais para menos que para mais ― engraçado, essa expressão me faz lembrar as pesquisas eleitorais, que mostram aquilo que querem mostrar e em nada da realidade― O de estatura mais alta era muito magro e loiro, não tinha mais que 14 anos, tenho certeza, seu rosto ainda guardava um quê angelical, e seus traços eram frágeis e delicados. Carregava um desses aparelhos que os jovens usam para se tornarem surdos mais rápidos ― ou que os fazem usar para que não tenham tempo de pensar e crescer ― e enquanto tentava manter sua postura cambaleante, xingava, o tempo todo, o outro que tentava em vão que o amigo tomasse um rumo, seja lá qual fosse. Assisti aquela cena como alguém que no tempo grego assistia a festa dionisíaca quando a alegria acabava e restavam apenas os escombros. Trágico?
Ainda não, mas as evidências apontavam para o desenlace da peça que provavelmente ao final de alguns anos as bacantes com certeza não fariam melhor. Perguntei ao mais lúcido:
―Ele está drogado?
―Parece que sim.
Ora nem precisava ele me dizer isso, estava parecendo. E como alguém que depois de levar o amigo para o mal caminho não quer se comprometer, mas se vê numa situação que a qualquer momento pode sair do seu controle, interpelou:
― Ele não está bem, acho melhor chamar o SAMU ― respondi então― Leve ele para casa e entregue á família ― Mas eu não sei onde ele mora?― Vocês não estavam juntos?―Sim, mas eu também não moro aqui ― Onde você mora? ―No Pacaembu, perto do Cataratas. ―E o que estão fazendo aqui no Nova York?― Eu estava na casa do meu tio. ― E onde mora seu tio?
O menino apontou com a certeza de que eu jamais saberia onde morava o tio dele, seja lá quem fosse. O desanexo havia erguido o som do aparelho para surdos e gesticulava tentando acompanhar os embalos de antes dos destroços, mas nada conseguia senão uma consterna-ação. Mortificado, minha garganta se abriu e num esgar quase convulsivo, sem que pudesse ser controlado ― Falei ― São tão jovens!
O desantenado então se ligou e prontamente me respondeu: ― Qué isso― Temos que aproveitá a vida mano, enquanto temos vida mano, só temos uma mano, temo que aproveitá! Conta que somo carioca, conta!
Eles não eram meninos com as evidências comuns de marginalismo, estavam bem vestidos e até olhei com atenção a calça do menino mais magro, pois parecia com o uniforme da escola estadual mais próxima. Não tive certeza ― embora, como nas pesquisas eleitorais ― mais para sim que para não ― então respondi ―Mas, meu querido, você não está aproveitando sua vida, você a está perdendo!
Neste momento que percebemos que as pessoas existem de fato, sentem de fato, e tentam, de alguma forma se esquivar quando se vêem acuadas de fato, quando são questionadas de fato, talvez pela modulação mais carinhosa da voz, talvez por estarem se sentindo realmente o rebotalho da festa, não sei... Porém aquele menino levantou o que pode o aparelho para mouquidão e cambaleantemente tentou, com o corpo, dizer que não me ouvira, mas ouvira, eu sabia e ele sabia, então disse― e se eu chamar o SAMU, provavelmente ele chamará a polícia ― O outro menino disse-lhe algumas palavras que surtiram efeito variado daquela ofensiva primeira. Ele abaixou a cabeça como se comandasse aquele corpinho impregnado do desregramento noturno, se voltou para o contrário da direção que vinha e sumiram na rua.
Voltei para a alegria das minhas plantas e o meu café proibido, afinal, o mundo não são apenas aqueles meninos, também as plantas sorriem quando chove depois de uma temporada empoeirenta.
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